NO CÉU COM BANANAS
Postado em25 Sep 2016 19 48 HISTORIAS DE MERICO



NO CÉU COM BANANAS

No meio da sala, apoiado em dois tamboretes, estava o caixão, sem tampa, expondo o defunto à visitação.  Em torno da cabeceira, a viúva e a escadinha de filhos.

Entre os presentes, dos mais jovens aos mais experimentados em velar defuntos, ninguém  vira algo tão inusitado.

O estranhamento, por mais que se tentasse dissimular, aparecia no rosto de todos e ganhava força no semblante dos órfãos pesarosos e de olhos compridos a passear pelos adornos em que se achava mergulhado o corpo do pai.

O olhar da viúva era o mesmo de sempre. O mesmo de antes e de durante o casamento.

Terminava ali uma relação de dez anos construída a partir de um conjunto de elementos, exceto amor. Agora era enterrar o finado e tocar a vida pra frente, cuidando da propriedade e dos seis filhos.  Não seria fácil, mas, em meio aos sentimentos conflitantes que se agitavam em seu silêncio, algo lhe dizia que, durante o casamento, passara por dissabores maiores.

Genuíno chegara à condição de solteirão em função do que o próprio chamava de esperteza. Após tomar três chamadas de cachaça no hotel de dona Moça, gabava-se ele de não que dar de comer e vestir a mulher, além de aturar seus caprichos e exigências bestas.

Filho único, por muitos anos morou com os pais, sem atentar para a iminente possibilidade de   ficar só, não obstante as constantes advertências recebidas:

- Genu, tu trata de arrumar uma mulher que pai, mãe, casa, comida e roupa lavada é bom, mas não é pra toda vida.

- Homi, casamento e chicote ficou pra matuto!

- E o que diabo tu é home, senão um matuto lá das brenha?

- Posso ser matuto, mas num me caso!

Mas com a morte repentina da mãe, em menos de um mês Genu estava acerando a casa de Chico Patinha interessado em Gugu, sua filha mais velha.

A moça, mesmo se deixando embalar, de vez em quando, pelos romances de amor que lia e pelas novelas do rádio que ouvia quando visitava os padrinhos,  achava aquilo além da sua realidade. Eram como se fossem histórias de trancoso.

Desde tenra idade Gugu foi sisuda, fechada, de pouca conversa e olhar rasteiro. Chegava a passar um mês sem trocar uma palavra com ninguém, exceto o sagrado pedido da bênção aos pais. Chamavam aquele comportamento de lundu e foi esta a primeira advertência feita pelo seu pai a Genu, quando este manifestou o interesse em casar-se com ela.

A união dos dois se deu em função de necessidades: a dele de continuar tendo a comida feita e a roupa lavada e a dela de garantir estas duas necessidades básicas. A pobreza dos pais, morando em terras alheias com uma penca de filhos para criar, fazia com que, muitas vezes, faltasse o alimento na mesa e a roupa para acompanhar, decentemente, uma procissão. Além dos mais, mesmo tendo boa aparência, seu comportamento arredio não atraia muitos pretendentes, tanto que chegara aos vinte e dois sem arranjar um namorado, sequer.

Mesmo tendo o dobro da sua idade, todos diziam que Genu era um bom partido. Homem trabalhador, muito prevenido, e prestes a herdar uma propriedade boa do pai. Daquelas redondezas, era o único que tinha dinheiro na Caixa. 

Na intimidade do lar, os filhos, vez por outra, conseguiam trazer à tona o desconhecido lado afetuoso de Gugu. Mas, afora estes instantes de leveza, a sua casmurrice se consolidou mais e mais ao longo dos anos, em função da mesquinhez do marido.

Faltava pouco para Genu contar os grãos de feijão a serem consumidos diariamente. Até a farinha, produto barato e abundante na região, ele controlava. Trazia, diariamente, do armazém, sempre fechado a cadeado, o mínimo necessário para o consumo de um dia. E isso não era devido à escassez, pois, nunca faltava ali um silo de feijão e um caixão de farinha, tão grande que se caminhava dentro, como se fosse um quarto.

Os filhos, crescidos dentro daquele sistema, achavam aquilo normal.  Já a mulher, jamais se acostumou, pois, mesmo tendo experimentado toda a sorte de privações, seus pais eram do tipo, comumente chamado de “barriga cheia”.

Frutas como manga, caju e umbu abundavam por ali. Já a banana, pela raridade, era tida como produto de luxo, objeto de desejo, especialmente, das crianças.  Mas Genu, por ter uma extensa várzea em suas terras, possuía várias bananeiras. Frequentemente, colhia ele pesados cachos deste cobiçado fruto que muitos desgostos causavam aos filhos e, principalmente, à mãe.

Sabendo do desejo das crianças pela fruta, ficava ela indignada ao ver o marido trazer do armazém cinco bananas, na hora do almoço, sendo uma para cada adulto e meia para cada criança.  Só quando estavam ameaçando se estragar, as crianças comiam uma banana inteira. Cortava o coração da mãe ver os meninos choramingando por bananas quando sabia ter pencas e pencas maduras guardadas.

O diálogo na família era restrito às necessidades básicas. Gugu sentia uma vontade enorme de jogar na cara do marido todo o sofrimento acumulado durante aqueles anos, mas sabia que, devido ao temperamento dos dois, no dia em que fizesse isso poderia acontecer uma tragédia. Pensava nos filhos pequenos e engolia a raiva, tornando-se mais e mais ensimesmada.

Mas acabou acontecendo. Naquele dia, parecia que os meninos haviam se reunido e deliberado em assembleia fazer um movimento pelo aumento da quota de bananas.  Achava-se a mãe impaciente com o coro infantil pedindo banana e puxando-a pela barra da saia, quando o marido entrou na sala, esbaforido, para o café do meio dia.

- Que diabo de zueira cachorra da mulesta é essa, mulé?

- Se tem um diabo aqui é tu, seu mortafome da mulesta! Os menino querendo comer uma banana e tu, com a tua unha de fome, deixa aí tudo trancado! Fui criada pobre, mas num fui criada com miséria não!

Suado, o marido olhava para a mulher, sem querer acreditar no que ouvira. E como se não bastasse, os olhos dela que sempre se mantinha cativos ao chão erguendo-se, no máximo, pelos cantos, pareciam faiscar e encarava-o em tom provocador. Pela primeira vez a mulher ousara reclamar do seu sistema e, mais do que isso, encará-lo de forma desafiadora. 

Estava com a cabeça quente do sol, mas pensou e agiu da forma que julgava correta para aquele tipo de situação. Trazia a fórmula de longas datas: Se a mulher ameaça soltar as asas, tem que cortar logo de primeira. Caso contrário, ela toma conta da situação e não tem mais quem dê jeito. E, associando esta crença ao fervor do sangue nas veias, pelo desmedido atrevimento da mulher, aproximou-se dela, ergueu o dedo em sua direção e, transtornado, gritou fazendo os meninos correrem para o quarto, assustados:

- Cale-se, sujeita! Senão dano-lhe a mão no pé do ouvido que você se estatala no chão.

Ela recuou. Colocou-se do outro lado da mesa e deixando vir à tona os sentimentos reprimidos por uma década, vociferou com os olhos ameaçando saltar-lhe das órbitas:

- Olhe aqui, seu macho, meu pai nunca levantou um dedo pra mim, viu! Pois fique sabendo que no dia que eu apanhar de você, das duas uma, ou você debanda dessa casa, ou lhe mando pro inferno: seja com uma mãozada de pilão na cabeça, seja com andrex na comida. Experimente, se for homem! – Disse isso, puxou um facão da gaveta da mesa e ficou a espera do marido em posição de defesa.

Ele, bufando e avermelhado como uma manga rosa, rosnou, tremeu, arregaçou a manga da camisa preparando-se para o soco, mas o facão enferrujado e pontiagudo falou mais alto. Com passos largos saiu, derrubou a porta de baixo com um chute e, pulando no cavalo, que descansava amarrado à pilastra do alpendre, saiu galopando estrada afora.

No fim da tarde, sentada no batente da cozinha, pensava ela no que fazer. Uma coisa era certa: voltar para casa do pai pobre, velho e doente, levando seis filhos, não poderia. Achava-se mergulhada nessas conjecturas, quando teve a atenção chamada pelas pisadas do cavalo aproximando-se da porta.  O marido não voltou naquela noite. Na manhã seguinte foi encontrado morto à beira da estrada. A mesma doença do pai, coração.

Com a notícia, passou a experimentar um misto de sentimentos conflituosos: O marido morto, os filhos sem pai, a liberdade para cuidar do sítio, a possibilidade de ajudar o pai e trazê-lo para a sua casa... E um pensamento surgiu-lhe como um grito: As chaves do armazém!

Os homens foram avisar o caso à polícia e cuidar do corpo. Ela ficou em casa na companhia dos filhos, que não entendiam bem o que ocorrera. E o armazém, onde ela nunca entrava, continuava lá, fechado, com seus tesouros... Especialmente, as pencas de bananas.

Num ímpeto, pegou um machado e, readquirindo a fúria do dia anterior, com três pancadas realizou o sonho de uma década: escancarou a porta do precioso depósito.

Silos, caixão de farinha, selas, esporas, cordas, arreios, ferramentas...  Vasculhava o espaço com os olhos quando, perplexa, avistou no chão algo que, não obstante o fato de está morto, murmurou ela entre os dentes, contra o marido:

- Ah, miserável!

O motivo da indignação foi ver, próximas de uma esteira onde ele costumava cochilar ao meio dia, muitas cascas de bananas espalhadas pelo chão. Concluiu: enquanto as crianças choravam de desejo pelas cobiçadas frutas, ele, sozinho, se banqueteava às escondidas.

Na tarde daquele dia chegou o féretro com o falecido.  Entre os conhecidos, algumas mulheres trouxeram flores para enfeitá-lo. Ela agradeceu, mas rejeitou.

- Se quiserem, podem levar pra enfeitar a cova. Pro finado, não carece não.

As comadres estranharam a recusa. Contudo, o estranhamento maior veio com a abertura do caixão. Do defunto, via-se apenas o rosto intumescido e as mãos envoltas em um rosário. Afora isto, todo o corpo estava submerso, não em flores, em bananas. Mais de um cento de bananas maduras, verdes, de vez.

Aldenir Dantas


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