OVO NO PILÃO NA FESTA DE SÃO JOÃO
Postado em10 Jun 2020 19 08 HISTORIAS DE MERICO


Dudé era um bom rapaz.  O sorriso, alimentado pelo jeito ameninado e pela anatomia do rosto, era sua marca registrada. Alguns diziam que não “girava bem”, tanto que nem conseguira estudar. Mas, o fato era que abandonara cedo a escola para ajudar ao pai, de saúde precária, a criar os seis irmãos menores.

Chamavam-no por toda a sorte de alcunha. Contudo, por mais desrespeitosa que fosse, sua reação nunca ia além do costumeiro sorriso.

- É abestalhado, mesmo! Diziam alguns por não obterem a reação desejada com os insultos.

Morava há poucos quilômetros de Mericó, num pequeno sítio herdado do avô. Trabalhava de sol a sol com pai, quando a saúde deste permitia. E para garantir o sustento da família, trabalha alugado a quem necessitasse dos seus préstimos.

Diversão, para ele, só havia uma: um bom forró, daqueles que começa às seis da noite e termina às seis manhã. Dançava que só uma carrapeta, mas nunca tinha dinheiro para pagar a quota.  Ficava, assim, à mercê da boa vontade do dono da casa ou do mestre de sala para fazer aquilo de que mais gostava.

Naquele ano, Dudé foi o primeiro a chegar na casa de Zé Baraúna para a tradicional festa de São João. Havia muita gente no local: convidados de longe, amigos da redondeza, parentes vindos da capital... O forró nem havia começado. Pelo terreiro enfeitado de bandeirolas, meninos corriam, brincavam, soltavam fogos... Em volta da fogueira, comia-se milho assado em meio a gargalhadas com as brincadeiras típicas. Moças e rapazes já se olhavam, discretamente, prenunciando possíveis romances. E do alto do mastro enfeitado, são João tremulava na bandeira segurando o seu carneirinho.

A alegria imperava quando, do alpendre, Zé Baraúna levantando-se da espreguiçadeira, com sua voz de trovão entre serras, gritou:

- Meu povo, o samba já vai cumeçá! Mas inda vai tê uma derradêra brincadêra! Espere aí qui já vorto!  Falou, entrou numa dispensa, de onde retornou com um pilão embaixo de um braço e a mão do pilão sobre o ombro. Atirou as peças ao chão, retirou um ovo do bolso e, colocando-o na cavidade do madeiro, continuou:

- Taqui o pilão, taqui a mão e taqui um ovo! E agora quero sabê se aqui tem algum caba disposto cum fôça e cum jeito pá quebrá esse ovo cum’a mãozada de pilão! Mas só pode sê uma mãozada só... Se num quebrá de primêra, vai tê de me pagá dez conto de réis!

- E s’eu quebrar, seu Zé, o que ganho? Perguntou um dos jovens galanteadores.

- Mai ora! Ganha a minha istima, cabôco! Qué coisa mió?

O tempo passava e nem um deles aderiam ao desafio. Talvez por já estarem devidamente vestidos para a festa, especialmente, os jovens se pavoneando nas investidas amorosas.

Entre estes estava o filho de Zé Marceneiro, uma daquelas pessoas que, segundo a sabedoria popular, possui “espírito de rico”. O pai, humilde, tinha por ele grande cuidado. Afinal, era filho único. Para as festas mais importantes do ano sempre comprava-lhe uma roupa nova e ainda dava-lhe uns trocados para pagar a quota e tomar um refrigerante. Mas o jovem, vez por outra, chegava a causar-lhe desprazeres com aquele jeito de querer ser o que não era.

Em meio à hesitação dos demais, o jovem carpinteiro circulava empertigado entre os presentes e, para impressionar as garotas, tirou duas cédulas de cinco do bolso e, mostrando-as, falou:

- Ah, ninguém tem coragem? Então eu dou dez contos de réis para quem conseguir quebrar o ovo! Mas, como disse seu Zé Baraúna, tem de ser de primeira!
Mal fechara a boca, ao seu lado colocou-se Dudé, ofegante e com seu habitual sorriso:

- Eu quebro! Eu quebro agora mermo! Falou, escanchou-se na peça de aroeira, levantou a mão o mais alto que pode e, com a força que a idade e o trabalho braçal lhe conferiram, provocou um estrondoso estalido quebradiço ao atingir a cavidade do pilão.

Gargalhadas explodiram por todos os lados. O conteúdo do ovo esmagado atingira-lhe em cheio o rosto e parte dos cabelos. Afastando com os dedos a sujeira dos olhos, Dudé levantou-se e, sorrindo sem graça, abaixou a cabeça.  O filho do marceneiro, sério, virou o rosto e, em tom de desprezo balbuciou:

- É abestalhado, mesmo!

- Ei, rapaizim! Se faça de besta não! E pode dá os dez conto pro minino, viu! – Falou o dono da festa ao perceber que o jovem tentava se esquivar do compromisso.

- Taí! Falou ele contrariado, atirando o dinheiro aos pés do vencedor, que o apanhou sem constrangimento, ainda limpando os olhos.

- Eita, Dudé, dez conto! A continha pá tu pagá a quota, homi! Hoje tu mata a tua sede de dança, né? Vai relá bucho até o só raiá! – Falou Chico Trovão, mestre de sala da noite, em tom de comemoração.

- Vou não, seu Chico. Vou nada! Vou é levá pra casa. Esse dinheirim vai dá pra comprá feijão e farinha que se acabaro hoje! Respondeu Dudé, demonstrando alegria com o prêmio.

Sensibilizado, um dos visitantes da capital levantou-se, dirigiu-se a ele e colocando-lhe a mão no ombro, falou:

- Pois você vai relá bucho até de manhã, sim! Porque a sua quota quem vai pagar sou eu!

- Chega, Dudé! Vai lá pá dento limpá a cara e butá loção qui mulé num gosta de dançá com caba fedeno a ovo gôro, não! –
Falou o dono da casa, mandando um dos filhos acompanhá-lo.

Por ser o melhor dançarino da região, todas gostavam de dançar com o jovem Dudé que se divertiu como nunca, naquela noite. De fato, o sol despontava no horizonte quando o sanfoneiro tocou a saideira.

O filho do Marceneiro, mal começara a festa, começou mancar alegando dores no pé. Em conversa com amigos disse não poder dançar com tais dores, portanto, iria embora cedo. E foi. Houve quem dissesse que a dor era falta de dinheiro para pagar a quota. Mas, como bolso dos outros é terra que ninguém anda, me abstenho de opinar.

Aldenir Dantas


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Aldenir Dantas da Costa
11 Jun 2020 22 24
Valeu, mestre e amigo Jomar Morais.
Nota mil este Planeta e seus leitores.
Jomar Morais
11 Jun 2020 02 51
Sensacional, poeta Aldenir! 10!
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