O ESTRANHO CASO DE DONA DODÓ, UMA MULHER AQUÉM DO SEU TEMPO.
Postado em07 Apr 2014 19 56 HISTORIAS DE MERICO

Era domingo de missa, por volta das dez horas da manhã, quando um pedinte bateu à porta de dona Dodó. Diferente da maioria dos mendigos que por ali passava, era jovem, pouco mais de trinta anos, barba cheia, cabelos desalinhados, vestia surrada calça de camuflagem e casaco militar desfigurado pelo tempo.

- Uma esmola, pelo amor de Deus! Uma esmola pelo amor de Deus... - Cansado com o peso do saco que trazia nas costas e mortificado pelo vazio do estômago, deixou-se cair sentado no batente, encostou a cabeça no portal, fechou os olhos e, mesmo não sendo sua intenção, se pôs a ouvir a conversa do interior da casa. Não adiantava chamar. Não iriam escutar. Quando se calassem, chamaria.

- De nada adiantarão as flores, os mimos, os bilhetes perfumados... Eu, Eudóxia Cavalcanti, com i, jamais deixar-me-ei enganar com os vossos galanteios, senhor Matos de Aguiar. - Houve um breve silêncio, o pedinte fez menção de levantar-se, mas desistiu quando ouviu novamente a mesma voz de mulher.

- Não, meu caro senhor. Sinto-me, deveras, lisonjeada, contudo, não posso alimentar suas esperanças. Seria leviandade da minha parte se o fizesse. Será sempre bem vindo a esta casa, para um chá e uma conversa amena entre dama e cavalheiro, jamais para tratar de cousas do amor. Passe muito bem, senhor.

- Uma esmolinha pelo amor de Deus! - Falou o mendigo, aproveitando o silêncio.

Passados alguns segundos a dona da casa apareceu à porta, causando-lhe a impressão de estar vendo coisas do outro mundo.

-Sim! Pois não, senhor. Qual é a sua graça e o que deseja?

Deixemos o pedinte boquiaberto com a imagem e o palavreado de dona Dodó, para conhecermos um pouco desta singular figura chegada a Mericó quando tinha quinze anos.  O pai, seu Cavalcanti, veio da capital para trabalhar nos Correios. Homem sereno, amante dos livros e apaixonado pela filha. A relação entre os dois era de encantamento, cumplicidade e profunda amizade. A esposa, mulher exemplar e exímia costureira, via estas afinidades e mimos como saudáveis criancices e agradecia a Deus por tê-la presenteado com uma família tão harmoniosa e feliz. 

Afora o tempo em que estava na intimidade do lar, Dodó era vista como uma pessoa estranha. Demonstrava esmerada educação, mas parecia alheia ao mundo, em constante estado de introspecção, melancólica, fria nas relações interpessoais, sempre erguendo barreiras em volta de si. O respeito a sua família a resguardava dos mexericos mas, vez por outra, se ouvia comentários do tipo "menina educada, mas, esquisita"; "antipática", "parece que vive no mundo da lua".

Preocupado, seu Cavalcanti chegou a procurar auxílio medico, mas diante da falta de um diagnóstico preciso, ficando os médicos no campo das especulações, desistiu da busca acreditando que o seu imensurável sentimento seria suficiente para auxiliá-la nas suas pequenas dificuldades. E assim viveram, com Dodó aventurando-se diariamente naquele mundo estranho onde ficavam a escola e tudo o que não era a sua casa. Lá fora fazia apenas o indispensável, retornando o mais breve possível para o conforto e a segurança do seu mundo onde estavam seu pai, seus livros e sua mãe.

Os primeiras festinhas foi com Coca, vizinha e única amiga. Achou a música insuportável, ensurdecedora. Portanto, nada de danças nem de namoricos. Nunca chegou a dizer isso, mas deduzia-se do seu jeito de ser e agir que, naquela cidade não havia nenhum jovem a sua altura, Estavam todos do outro lado da sua intransponível muralha. Por estes e outros comportamentos, diziam que tinha "espírito de rica" e que "só queria ser as pregas de quelé". O pai, na sua empatia, sofria as dores silenciosas da filha e, por mais de uma vez, chorou ao vê-la dormir, frágil criança na solidão da sua cama de solteiro, sem irmãos, sem pretendentes e, futuramente, sem pai e sem mae. 

Concluiu brilhantemente o curso ginasial e, por se recusar a estudar em outra cidade, encerrou os estudos, dedicando-se à leitura e ao ofício da mãe, cuja morte abalou severamente a sua saúde. Só não mergulhou num quadro de irreversível depressão porque o pai, já aposentado, a conduziu firmemente, trazendo-a, ainda mais, para junto de si, aparando-a, fortalecendo-a e fazendo-a ressurgir da escuridão para uma vida produtiva e, relativamente, normal.

Após este trauma, algumas das suas esquisitices se acentuaram, como: valorizar excessivamente o sobrenome Cavalcanti, usar o padrão culto da língua para todas as situações, conversar, e até travar, sozinha, longos diálogos, cultivar normas de etiqueta e gostar de vestir-se à moda antiga. Mas como nunca saía de casa, quem presenciava estes desvarios eram apenas o pai e a vizinha e amiga Coca.

Com o passar dos anos, foi aclamada como a melhor costureira de Mericó e região. Esquisita, às vezes parecia uma figura saída do outro mundo e a cada dia suportava menos que a chamassem de Dodó. Ninguém a tratava assim e quando, acidentalmente, o fazia, a resposta era imediata:

- Meu nome é Eudóxia. Eudóxia Cavalcanti. Cavalcanti com i.

Quando a base de apoio de uma pessoa se encontra fora dela, o risco de desmoronamento é muito alto. E foi isso o que ocorreu com dona Dodó em relação ao pai. Já com a idade avançada, chegou sua vez de partir e o fez, notoriamente, preocupado com o destino da filha. Conhecedor das suas fragilidades, suas preocupações eram pertinentes, tanto que o pior aconteceu, não obstante a amizade e os cuidados da amiga Coca, já casada e com filhos crescidos, mas sempre presente.

A perda do pai não lhe causou aquela dor comum às demais pessoas. Seu comportamento assemelhou-se ao de quem usa uma chave reversora para alternar situações. Girando a chave, teria ela trocado o mundo onde viva, apesar das constantes fugas, pelo seu mundo privado, incompreendido e incompatível com a vida real. Nem chegou a interromper os trabalhos de costureira. Era como se nada tivesse acontecido. Coca, ficando por dona da casa, nos primeiros dias, logo percebeu que Dodó, ao contrário do que imaginavam, não estava bem e chegou a essa conclusão ao vê-la costurar o vestido de uma cliente de modo avesso à encomenda. Não havendo mais o que fazer, deixou para lá, mas tentou chamá-la a si.

- Dodó, minha amiga, não era assim que a freguesa queria o vestido. Mas termine assim mesmo e tenha mais cuidado com os outros.

- Maria do Socorro, se você permite que a tratem por alcunha, eu não! Meu nome é Eudóxia. Eudóxia Cavalcanti. Cavalcanti com i.

A amiga estranhou a reprimenda. Era de casa e, na intimidade, todos a chamavam assim, mas, para não contrariá-la, calou-se e passou a fazer sua vontade. O que não teve como contornar foram os estragos feitos nos cortes de tecidos das freguesas. Afora os que conseguiu esconder, foram transformados em peças tão antiquadas que ninguém em sã consciência ousaria vesti-las.

A partir daqueles dias, romperam-se os liames que permitiam o trânsito entre os seus dois mundos, passando dona Dodó a viver integralmente a sua realidade, tida pelos demais como loucura. E, livre dos conflitos e censores internos, sentiu-se à vontade para ir à bodega, à feira e até dar um passeio às margens do rio ou pela praça, onde gostava de sentar para usufruir da brisa do entardecer.

As primeiras vezes que saiu à rua após o ocorrido constituíram dolorosos momentos para a amiga. Pessoas, indiscretamente, corriam para as portas e janelas e a meninada seguindo-a, transformava uma simples ida à bodega em deprimente cortejo. Dona menina sentiu-se extremamente penalizada ao vê-la daquele jeito, vestida como uma gravura de livro de história adentrando, altaneira, a sua mercearia. Com muito esforço, a boa senhora a cumprimentou, reprimindo as lágrimas:

- Minha filha, que Deus lhe abençoe!

- Senhora Etelvina Raposo, preciso de alguns aviamentos para costura, meia dúzia de pães e uma garrafa de um bom vinho do porto.

Sem, sequer, lembrar da última vez que alguém a chamou pelo verdadeiro nome, dona Menina colocou a caixa de aviamentos sobre o balcão e, atordoada, pediu-lhe para escolher o que desejasse, embrulhou os pães e, aproximando-se, disse-lhe baixinho:

- Minha filha, agora esse tal vinho do porto, não tem não. Nunca vendi e nunca ouvi nem falar. Aqui só tem cajuína e vinho de jurubeba, em garrafão. Mas não compre isso não, minha filha. Faz é mal à saùde.

A amiga Coca a acompanhava no seu dia a dia, corrigindo uma coisa aqui, outra ali, ajudando-a na administração da casa e a tomar alguns remédios. Doía muito vê-la tratada como louca e, até servindo de chacota, a meninos mal educados e adultos insensíveis. Dodó era doente, sim, mas não fazia mal a ninguém e, mesmo com suas esquisitices, era uma boa pessoa.

Voltando ao mendigo, vamos encontrá-lo visivelmente perturbado com a estranheza da mulher vestida de um jeito diferente de todas as pessoas que já vira. Parecia uma visagem. Mesmo assim, era bonita de se olhar...

- Senhor, sua graça e o que deseja, por favor!

- Senhora, tô pedindo uma esmola pelo amor de Deus.

- Senhora, não! Senhorita Eudóxia Cavalcanti. Cavalcanti com i.

- Sabe, dona, é essa secona grande, a gente sem meio de vida, a fome bate, aí o jeito é sair por aí pedindo.

Abrindo a porta de baixo, dona Dodó, com gesto teatral, convidou-o a entrar.

- Vinde, senhor. Entrai, sentai comigo à mesa e saciai a vossa fome.

Sem jeito e esperando encontrar a pessoa que há pouco conversava com a dona da casa, atravessou a sala de estar, o longo corredor, chegou à sala de jantar e, seguindo instruções da anfitriã, sentou-se à mesa. Ela, após dispor pratos, talheres e alimentos, sentou-se e livrou o convidado dos incômodos da etiqueta.

- Teu aspecto fala por ti, senhor. Decerto, vindes da guerra e, à nobreza do guerreiro, não é lícito impor os ditames da etiqueta. Comei, pois, do que quiserdes e como quiserdes, sem cerimônias e, se desejardes, com as próprias mãos.

- Tem razão, dona. Escuto falar de guerra e fico pensando se lutar contra soldado inimigo é pior do que lutar contra a fome.

- Mais do que um valente guerreiro, um filósofo! A que família pertence, o jovem senhor?

- Meu pai é dos Costa, lá do Saco de Dentro, perto de Riacho.

- Costa, de Duarte da Costa, uma família nobre. Sou Cavalcanti, com i, tradicional família italiana, citada por Dante Alighieri na Divina Comédia. No século dezesseis, o jovem Filippo Cavalcanti, chegando daquelas terras, se fixou e constituiu família em Pernambuco e cá estou, fruto desta monumental árvore genealógica.

Após lauta refeição, satisfeito e encantado com aquela mulher, cujo jeito de vestir, falar e, até, comer nunca vira igual, o pedinte seguiu em sua companhia pelo corredor até a porta onde, mais uma vez, agradeceu-lhe. Por fim, instintivamente, colocou o saco na calçada e, inclinando-se respeitosamente, levou a mão da senhorita Eudóxia aos lábios e a beijou, como só um cavalheiro faria.

De uma janela, ou calçada, alguém viu a cena. Foi o suficiente para circular pela cidade que dona Dodó, além do juízo, perdera a vergonha. Nos tempos da mocidade esnobara os rapazes de Mericó, agora, no caritó, andava de chamego com um esmolé. Coca ficava triste com estes comentários. Já dona Dodó, por não ser normal, vivia alheia ao que os normais faziam, diziam ou pensavam ao seu respeito.

Não sabemos se dona Dodó era feliz. Decerto, era livre. Livre para fazer coisas como comprar bananas na feira vestida como uma dama do século passado, transformar Ki-Suco de uva adoçado com rapadura preta em vinho do porto e ter sempre uma companhia amiga, elegante e galanteadora a acompanhá-la em seus jantares e passeios vespertinos.

Aldenir Dantas

Para abrir a janela de comentarios, clique sobre o titulo do texto ou sobre o link de um comentario:
Para abrir a janela de comentarios, clique sobre o titulo do texto ou sobre o link de um comentario

Deixe um comentario
Seu nome
Comentarios