UMA COMIDA ESTRANGEIRA
Postado em16 Nov 2014 21 20 HISTORIAS DE MERICO



Zé de Janu sempre morou no sítio. Um dos sítios mais distantes de Mericó. Desde criança, nunca gostou da cidade. Isso era um fato raro, pois, coisas como um dia de feira, uma festa de padroeira ou um sete de setembro na cidade para um menino do sítio chegavam a ser motivos de deslumbramentos. Mas ele, diziam os próprios pais, só ia se fosse obrigado. Parecia um bicho do mato.

E assim se fez homem, juntou-se com uma jovem da redondeza e vivia em extrema simplicidade e tão integrado àquele ambiente, que parecia fazer parte da paisagem íngreme e espinhosa do pé da Serra dos Ventos, onde moravam.

Podia-se até esperar que a mulher o incentivasse ao convívio social, pelo menos a ir mais à feira, à missa, a uma procissão... Mas como se dizia por aquelas bandas, "para cada panela há um texto" e ela era tão ou mais antissocial do que ele. Tanto era que, numa rara oportunidade em que algum estranho lhe batia à porta, se estivesse sozinha não atendia e se o marido estivesse ficava no quarto ou na cozinha e de lá só saía quando a visita fosse embora. Até com o marido a sua conversa era mínima, quase monossilábica.

Outra característica do casal era a extrema pobreza herdada dos pais e dos avós que sempre viveram espremidos numa pequena posse de terra encravada na encosta da serra, tão íngreme que se tinha a impressão de que ao sair da casa alguém poderia cair e rolar ladeira abaixo.

Naqueles tempos, na zona rural, o referencial de riqueza era ter uma casa de tijolos caiada, com alpendre, cadeiras na sala, um rádio e pelo menos uma rês.

O referencial de extrema pobreza poderia ser personalizado por Zé de Janu. Morava numa casa de taipa, com varas e forquilhas aparentes por falta de reboco, com uma esteira no chão da sala onde faziam as refeições, uma trempe de pedras na cozinha servindo de fogão, uma cama de varas trançadas forrada com capim seco e, completando a mobília, um velho baú e um guarda-louça de compensado, herdados da avó, já bastante maltratados pelo tempo e pelo cupim.

Com pouco mais de um ano de casado, estava Zé brocando um pedaço de mato para a plantação de um novo roçado quando a sogra chegou às pressas, esbaforida:

- Zé, homi! Corre na rua atrai de dona Branca qui tua mulé tá sintino dô pa tê minino!

- E tem qui i mermo? - Falou, tirou o chapéu, coçou a cabeça suada e fez uma careta.

- Tás abiloulado, é homi? Tem de i logo! E tome imprestado o burro de cumpade Sivirino, qui  Branca parteira num vai guentá andá  de apés até esse fim de mundo, não.

Passadas três horas, chegavam à porta de Dona Branca: o burro ensopado de suor e Zé de Janu, além de incomodado por estar naquele ambiente urbano que lhe fazia sentir um peixe fora d'água, extremamente constrangido por ter de bater à porta de Dona Branca, com quem nunca, sequer, falara e ainda pedir para ir a sua casa, naquelas lonjuras.

Apeou-se devagar, amarrou o burro em um poste e, foi se achegando sem jeito, tomando coragem para dizer "ô de casa!". Mas nem precisou: Ela percebendo-o, abriu a porta e com a sua natural simpatia e generosidade, antecipou-se.

- Boa tarde, meu filho. Me diga o que se passa. Está querendo falar comigo?

- É sim, dona. A mãe da muié dixe pra vim buscá a sinhora qui se parece quela vai tê minino.

- Sua sogra vai ter um menino, meu filho? - Falou em tom de brincadeira, para descontraí-lo, deixá-lo mais à vontade... E funcionou. Ele relaxou um pouco e disfarçando o sorriso com o chapéu, respondeu:

- A véia minha sogra tê minino? Nã, dona! é minha muié.

Aquela era a rotina de Dona Branca, viajar pelos rincões distantes de Mericó fazendo partos, aplicando injeções, encaminhando doentes para os hospitais. E isso fazia a pé, de bicicleta, cavalo, burro... O difícil, mesmo, era ir de carro.

- Meu filho, pegue aqui um punhado de milho e égua pra esse coitado desse burro, senão ele não aguenta a volta. Enquanto isso, vou arrumar alguma coisa para você comer, que já tá amarelando de fome. E não se preocupe, que o menino espera a gente chegar!

Com a ajuda de Dona Pretinha que sempre estava por ali, ajudando Dona Branca, todas as providências foram tomadas e, pela primeira vez, Chico se viu forçado a sentar em uma mesa grande, com cadeiras altas, coisa de gente rica, mesmo; no seu entendimento.

A sua frente um prato vazio que a ajudante começou encher: feijão, arroz, carne, farofa... Mesmo, ainda, pouco à vontade, cada coisa que ela acrescia ao prato lhe deixava com a boca mais e mais cheia de água. Enquanto isso, Dona Branca, sentada à mesa, colhia com ele algumas informações sobre a sua família. O prato já estava quase transbordando quando dona Pretinha, chegando com uma travessa de macarrão, falou:

- Agora, só  falta um macarrãozinho, e pronto!

Ao olhar para aquela comida estranha, Zé não conseguiu impedir que algumas analogias impensáveis lhe chegassem à mente. Sentindo-se dominado pelo asco, reagiu altivamente e, pela primeira vez, fez valer a sua vontade diante de gente rica, impedindo que colocassem aquela esquisitice no seu prato:

- Nã sinhora! Nã sinhora! Muito gradicido. Mai de cumida istrangêra, a única queu gosto é de doce de latra.

Aldenir Dantas



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Ramalho Medeiros da Costa
26 Nov 2014 16 57
Mais uma vez me encantei com o escrito desse poeta/escritor,
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