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Introdução ao estudo do BUDISMO
Texto elaborado pelo médico e terapeuta Luis Fernando Ruegger
Trabalho baseado nos ensinamentos da tradição Nyingma, veiculados no Brasil através do CEBB, Centro de Estudos Budistas Bodisatva. A maior parte de informações contidas neste texto provém dos ensinamentos do lama Padma Samten , complementados por comentários do prof. Alan Wallace e das tutoras do programa para formação de facilitadores do CEBB, Jeanne Pilli e Márcia Baja.
Um resumo histórico
Conforme palavras de Joseph Campbell, estudioso das mitologias comparadas, “ é impossível reconstruir o caráter, a vida e a verdadeira doutrina do homem que se tornou o Buda”. Supõe-se que tenha vivido entre 563 a 483 a.C., entretanto sua mais antiga biografia consta do cânon páli e começou a ser escrita no Ceilão( atual Sri Lanka), apenas em 80 a.C. , portanto já permeada com muitos componentes míticos. Trata-se de uma biografia arquetípica de um Salvador, cujo conteúdo se mostra extremamente similar em inúmeros aspectos com a história de nascimento e vida de Jesus, escrita mais de 5 séculos depois. (cf. Joseph Campbell em “as Máscaras de Deus”, vol.Mitologia Oriental, pgs 203 a 205). Em síntese, não importando se verdade histórica na Índia de 2.600 anos atrás ou se surgido a partir de lendas, o Budismo tal como hoje é difundido em diversos países asiáticos e mais recentemente no Ocidente, surge como um movimento de consciência para o reconhecimento e a liberação do sofrimento humano a partir dos ensinamentos do Buda Sakyamuni , identidade amadurecida ou iluminada de Sidharta Gautama, príncipe da linhagem dos Sakyas, filho do rei Suddhodana da Dinastia do Sol.
Em várias versões de sua história , conta-se que o jovem Sidharta, apesar de cercado de conforto e facilidades em companhia de uma bela esposa e tendo já um filho recém nascido, contrariando a vontade do rei que o protegia da realidade mundana, sai um dia a passeio para fora do palácio e é abalado pelo constatação de inúmeras mazelas humanas. Diante da inevitável perspectiva do confronto com as doenças , a velhice e a morte , movido pela necessidade de respostas existenciais, Sidharta decide partir em peregrinação ao encontro de sábios da época , abandonando sua vida de príncipe. Após 7 anos de práticas ascéticas nas florestas e frustrado por reconhecer a inutilidade de tais esforços, acaba por afastar-se dos monges que o acompanhavam isolando-se em silêncio meditativo ( neste trecho da lenda, é forte a semelhança com os relatos cristãos dos 40 dias de Jesus passados no deserto).
Sentado sob a copa de uma árvore bhodi , Sidharta vê-se confrontado com o demônio Mara, Senhor da Roda da Vida e representante da impermanência . Por manter-se em sua pratica meditativa, Sidharta não responde a qualquer fenômeno percebido interna ou externamente e , por fim, acaba por reconhecer na figura de Mara e em suas e tentativas de subjuga-lo pelo apego aos prazeres ou a enfraquece-lo através do medo, os equívocos da mente construtora de maya (o mundo de ilusões). Vendo-se agraciado de forma natural e espontânea com uma visão interior(insight) de liberdade plena, a partir deste momento atinge a condição de Buda, cujo significado é “o Iluminado”, ou seja, aquele que despertou dos sonhos criados pela mente deludida .
Uma vez dotado de lucidez, compreende a impermanência como condição de todas as coisas construídas e infere os meios hábeis para se obter liberdade diante de Samsara (a experiência cíclica do nascimento à morte ) ao reconhecer a relevância de 4 nobres verdades e um caminho óctuplo de ações no mundo. Reconhece a natureza última e ilimitada da mente como subjacente a todo e qualquer fenômeno e compreende essa essência prístina como vazia e ao mesmo tempo luminosa , com infinito potencial criativo (natureza vajra), eternamente presente, viva e com propósito compassivo e amoroso.
Emanando as qualidades advindas dessa Sabedoria Primordial, o Buda levanta-se e passa a caminhar em direção às pessoas (Thathagata- aquele que assim se foi), dedicando o restante de sua vida a oferecer ensinamentos em benefício de todos os seres a fim de que também se libertem dos sonhos de sofrimento gerados em Samsara.
O Buda Gautama, tendo ensinado por 46 anos, termina sua jornada terrena aos 80 anos de idade, revelando aos seus discípulos que a Vida é UNA, eterna e sem opostos, e que todos os seres sencientes, enquanto expressões de Vida, experimentam somente processos de construções mentais de natureza impermanente chamados de Bardos ( constituídos em número de 6: o Bardo da Vida, dos Sonhos, da Meditação,o Bardo da Morte, Pós -morte e do Renascimento) .
Nos relatos sobre seus diálogos com os discípulos, estas foram as últimas palavras a ele atribuídas : “Manifestei um corpo de sonho, para beneficiar seres de sonho, imersos em um mundo de sonho. Eu não vim e eu não vou.”
Os ensinamentos do Buda Gautama continuaram a ser transmitidos de forma oral por seus mais de 500 discípulos. Assim foram sendo constituídas várias linhagens a se espalharem para diversas regiões do Oriente. Surge o budismo chinês, levado pelo monge Bhodidharma por volta de 520 a.C. ; o budismo japonês emerge com várias vertentes , entre elas , o zen budismo a partir do séc. XI d.C com suas subdivisões, todas de influências taoístas advindas do Ch’an chinês . Ainda no Japão uma outra ramificação surge no século XII d.C com ensinamentos do monge Nitiren. No Tibete o budismo tem um período áureo sob as influências do imperador indiano Ashoka (268 a 232 a.C.),considerado como o 1º rei budista. Por volta do século VIII d.C estabelece-se entre os tibetanos a linhagem Nyingma (literalmente significando antiga), introduzida por Padmasambhava ou Guru Rinpoche , tido para este povo como o 2º Buda, emanação direta do Buda Sakyiamuni. Até o final do século X d.C, mais 4 linhagens tibetanas se estabelecem segundo o estilo de seus diferentes professores.
Mais recentemente, no ocidente, o lama Chagdud Tulku Rinpoche ( refugiado da invasão comunista chinesa no Tibete em 1959) traz os ensinamentos Nyingma , a princípio para os Estados Unidos em 1979 e posteriormente para o Brasil, no ano de 1995, tendo no lama Padma Samten (brasileiro, físico de formação acadêmica e criador do Instituto Caminho do Meio e CEBB- Centro de Estudos Budistas Bodisatva, em Viamão,RS.) um de seus maiores divulgadores.
Por volta do século II d.C, os textos budistas passaram a ser veiculados a partir de 2 abordagens distintas: Hinayana (veículo inferior) e Mahayana (grande veículo) , onde os adeptos da primeira escola buscavam essencialmente por uma libertação pessoal, enquanto que os praticantes mahayana procuravam conduzir todos os demais seres à liberação de Samsara. A partir de então, surgem as figuras dos bodhisatvas, praticantes inspirados pelo Buda da Compaixão , Chenrezig ( tibet.) ou Avalokiteshvara( sânscr..), que hoje têm em Sua Santidade, o Dalai Lama, da tradição Gelug, seu grande líder espiritual e protetor de todas as demais tradições tibetanas, incansavelmente motivado em difundir uma visão de Responsabilidade Universal ou seja, a construção de uma Cultura Global de Paz.
Curiosamente, ainda com relação ao Tibete, há relatos de que práticas pré-budistas já floresciam há mais de 17 mil anos através de uma tradição xamânica conhecida como Religião Bon. Esta antiga tradição ainda hoje possui muitos adeptos sendo conhecida nos tempos atuais como Budismo Bon e encerra uma visão bastante convergente com a linhagem Nyingma ( pertencente ao Budismo Vajrayana ou esotérico - extensão da abordagem mahayana) .
Nos tempos atuais torna-se possível superar muitas estruturas de preconceito ao se compreender que o termo Buda não se refere a alguém, nem mesmo que seja algo ligado ao budismo, mas tão somente um indicador da operação livre da mente a partir da sua natureza primordial ilimitada. Neste contexto, o Budismo não precisa necessariamente ser considerado como religião ou filosofia, nem como ciência da mente como hoje muitos adeptos propõem , mas tão somente como um método para se atingir tal estado de liberdade frente às realidades construídas artificialmente. Dentro deste mesmo raciocínio podemos considerar vários mestres de inúmeras tradições religiosas como sendo verdadeiros Budas : homens e mulheres a servirem de inspiração aos praticantes, independente da época em que viveram , de seus locais de origem ou se suas histórias verdadeiramente se basearam em fatos ou se foram construídas através de lendas.
O pilar budista
O que torna o budismo fascinante nos dias de hoje é que, apesar de origem milenar, sua visão de mundo baseada na vacuidade, unidade , não causalidade e não localidade tem encontrado convergência com muitos elementos atuais trazidos pela física quântica, tais como os conceitos de campo unificado, saltos quânticos, bootstrap e coemergência diante da inseparatividade entre observador e observado (fator que tem reforçado a compreensão de que o mundo que nos circunda é inseparável de nós mesmos). Por outro lado, a meditação como eixo de suas práticas tem tido o interesse e o apoio da moderna neurociência que, em pesquisas de laboratórios, vem encontrando uma série de correlatos neurais às referências de praticantes quanto aos efeitos da meditação. Sofisticados exames de neuroimagem têm sido utilizados para revelar fenômenos de neuroplasticidade, enquanto exames bioqúimicos têm evidenciado alterações significativas na fisiologia dos neurotransmissores. Estudos através de instrumentos de neurofeedback vêm demonstrando a reorganização e sincronização das várias ondas cerebrais com a eliminação de “gaps” entre elas, a se traduzirem em conforto psíquico e físico nos meditantes. Desta maneira, os efeitos surpreendentes das práticas contemplativas na requalificação das emoções humanas com consequente mudanças nas experiências interpessoais , aliados a uma abordagem educacional voltada para os valores humanos fundamentais como amor , compaixão, equanimidade e paz , têm feito do budismo uma tradição de crescente interesse em todo o mundo, particularmente entre os ocidentais.
Metodologia
A perspectiva Dzogchen , a Grande Perfeição ( - um sistema de prática Mahayana encontrado nas primeiras tradições Nyingma e Bon, cuja base é a tríade visão-meditação -ação).
Antes de serem abordados os aspectos principais das práticas meditativas e de nossas ações dentro da sociedade, torna-se fundamental compreender a importância da nossa visão de mundo na sequência desta tríade. Tem sido reforçado pelos mestres que, sem o desenvolvimento de um outro olhar sobre nós mesmos, sem reflexões sobre as configurações do mundo e como nos experimentamos como criadores de nossas realidades, os esforços de meditação gerados por falsas expectativas e pelo autocentramento, a despeito de possíveis resultados naturalmente positivos, tenderão a nos levar, enquanto praticantes , ao cansaço, ao desânimo e à criação de outros elementos ilusórios capazes de consumir nossas energias na construção de inúmeras outras “bolhas” , cópias maquiadas de samsara, ou seja, de inúmeros outros sonhos de realidade induzidos por antigos condicionamentos , em conjunto com os esforços inócuos em dar-lhes solidez e sustentação (materialismo espiritual). Sem que nos dediquemos a trabalhar com afinco na ressignificação de muitas de nossas crenças a fim de construirmos em nossas mentes uma base capaz de nos induzir a uma motivação verdadeiramente voltada para uma experiência de vida focada na unidade e no amor universal , qualquer resultado obtido estará apenas mudando as cores superficiais de samsara sem atingir, de fato, sua raiz geradora de sofrimento .
A visão
Para o budismo, portanto, aquilo que se constitui Samsara, a experiência cíclica da vida, se deve a uma construção mental automatizada e responsiva compreendida como Avydia( em sânscrito: falta de visão, ignorância ou desconhecimento) ou Ma-Rigpa (em tibetano ), geradora de experiências de separatividade.
A mandala da Roda da Vida pictoricamente tem seu centro representado pela interação de 3 animais : o javali , como expressão da própria ignorância em si, constituindo uma identidade reificada; o galo, representando os apegos e ambições ligados às necessidades de sustentação desta identidade e a cobra, símbolo da raiva, quando tais desejos são frustrados e tornam-se infrutíferos (os 3 venenos da mente: ignorância, ambição e raiva). A seguir, partindo deste 1º núcleo central surge o desenho de um novo círculo a representar 6 reinos de experiências mundanas que evidenciam padrões emocionais básicos através dos quais a mente mantém a roda em movimento . No 1º desses reinos, chamado de reino dos deuses, predominam experiências de mundo repletas de facilidades e bem aventuranças capazes de induzir os seres ao orgulho; no reino dos semideuses ou dos asuras (guerreiros), surgem também situações de poder, porém sustentadas por competições e inveja ; no reino dos humanos, os seres se vêem arrastados por experiências de desejos e esforços; no reino dos animais surgem dificuldades que despertam a preguiça, indiferença e o culto ao hedonismo ; no reino dos fantasmas famintos as experiências se dão no enfrentamento de situações de carência e no surgir de diversos vícios ; finalmente, no reino dos infernos, dá-se o encontro com a violência, o ódio e os medos. O último e maior círculo da mandala representa os 12 elos de originação interdependentes, o caminho percorrido pela mente deludida para dar concretude às experiências de vida. Por fim , o desenho termina com a figura de Maharaja ou Mara ,o senhor da impermanência, por detrás da roda a sustentar todo o processo.
As 4 nobres verdades Os conceitos de Karma, Vacuidade e Luminosidade
A esse intenso trabalho da mente através dos 3 animais , 6 reinos e 12 elos para manter o giro da roda , chamamos de Karma. Naturalmente , as ações cármicas, caracterizadas por incessantes tentativas de defesa aos “javalis” continuamente ali gerados, acabam por se constituir como a origem de dukkha ( sofrimento) e são a base do enunciado da 1ª nobre verdade elaborada por Buda. Em sequência, surgem os pontos principais capazes de devolver à mente uma condição de lucidez e a consequente libertação dos jogos dentro de Samsara . Estes aspectos estão na compreensão direta de que o sofrimento não é algo sólido, mas sim uma condição construída e sustentada por apegos e aversões (2ª nobre verdade) e que assim sendo, pode vir a ser desconstruído (3ª nobre verdade) através da prática de um caminho óctuplo (4ª nobre verdade) que culmina na constatação de que a Vida (e portanto, nossa própria natureza básica ) nada mais é do que Pura Consciência , uma natureza primordial misteriosa, incessante e livre , vazia em sua essência, porém de infinito potencial de manifestações ( luminosidade), capaz de gerar indefinidamente novas formas, percepções, sensações, formações mentais e novas consciências ( 5 skandas, ou agregados). Para facilitar a compreensão de tal conceito , uma analogia pode ser feita com a imagem de um arco-íris : do mesmo modo que podemos entender a luz como um fenômeno eletromagnético único mas com potencial de se manifestar em várias cores ( ou espectros de luz) ao atravessar um determinado prisma (e cada um desses espectros com suas diferentes características e propriedades distintas , porém , todos em essência a constituir a mesma luz), assim ocorre com a Consciência Una, que ao escolher filtrar-se por certos elementos prismáticos, passa a se manifestar em espectros de consciência (cf. Ken Wilber).
No nosso caso, poderíamos enxergar o prisma como sendo um SNC humano, e cada um de nós, homens ou mulheres, um desses “espectros”, a manifestação individualizada da mesma Consciência. Assim como podemos compreender que um arco íris não é algo que possua substância , não se trata de um objeto concreto escondido atrás das nuvens aguardando o surgimento do sol, mas apenas um fenômeno dependente de múltiplas condições e circunstâncias (cf. Joseph Goldstein em “ One Dharma”), poderíamos também entender que nós não temos real substancialidade, apenas constituímos um fenômeno “sui generis”, de raras qualidades, a representar somente uma construção transitória e sem solidez criado intencionalmente pela projeção luminosa da Mente primordial.
De acordo com o prof. Alan Wallace, estudioso do budismo, monge ordenado pela S.S, o Dalai Lama e fundador do Santa Barbara Institute for Conciousness Studies ,Ca, seriam três os níveis da mente:
1. Rigpa, ou Consciência Pura, Natureza de Buda ou Mente primordial , Fonte original da Vida ( e portanto, permeadora das demais consciências).
2. Consciência substrato ou Alayavjnana, constituída como um depósito de marcas cármicas de todos os seres, humanos ou não ( metaforicamente, poderíamos imaginar rigpa como água e alayavjana como pedras de gelo)
3. Mente comum ou psique, uma consciência individual configurada através de identidades construídas ( tais como as que constituem várias espécies de seres sencientes , e no caso humano, acrescidas por aptidões profissionais, crenças religiosas, papéis sociais e familiares , etc...)
Desta maneira, na nossa humanidade e considerando-se a experiência do bardo da vida, sempre que o cérebro passa fisiologicamente a funcionar em “stand-by” para o resguardo da vida biológica, a mente comum termina por se dissolver na mente substrato ressurgindo novamente nos sonhos(bardo dos sonhos)e também quando despertamos. Ao final da vida constituída pela materialidade do corpo físico (bardo da morte), a mente também se dissolve no substrato e, neste caso, não havendo gerado lucidez ( bardo da meditação) quanto a sua verdadeira natureza, as operações mentais de avydia ou ma-rigpa produziriam outros impulsos capazes de nos levar a aspirar por um novo corpo(bardo do pós morte) para finalmente nos manifestarmos na forma de uma nova existência (bardo do renascimento).
Deste modo, segundo A. Wallace, o que seguiria de uma vida para a outra ( diferente de outras abordagens reencarnacionistas ) não é uma determinada personalidade específica, mas apenas a consciência substrato e o prana dentro de um continuum mental. Os mestres considerados realizados podem acessar essas marcas de alayavjnana com facilidade e desenvolvem habilidades em interferir conscientemente em todo o processo de morte e renascimento, enquanto tornam-se possuidores de determinados poderes em vida a fim de criarem meios hábeis para trazer benefícios aos seres.
Assim, aprofundando nossa compreensão, a noção de vacuidade não precisa ser niilista e mal humorada. Podemos , de forma lúdica, observar que é possível construir identidades e levá-las a interagir umas com as outras, compreendendo-as como uma simples configuração de energia sem que fiquemos presos aos impulsos dos 5 skandas e sem nos apegarmos aos movimentos que criamos. Não é preciso darmos a essas energias concretude a ponto de se manifestarem como se tivessem vida própria ( ao que Eckhart Tolle chama de “corpo de dor”).
De um modo geral, o conceito de vacuidade poderia ser apreendido por nossa mente comum através de 3 maneiras distintas :
1) pela lógica do pensamento científico ao se desconstruir , passo a passo, objetos materiais. Como exemplo, poderíamos analisar uma pessoa vendo seu corpo e decompô-lo em seus diversos sistemas e órgãos, sucessivamente fragmentando-o em tecidos, células, componentes químicos constituídos por moléculas , átomos , partículas, subpartículas, até a constatação final de um vasto espaço a constituir um campo unificado de infinitas possibilidades de manifestação por meio de colapsos de ondas.
2) pelo significado livre dado ao objeto. Como exemplo , uma vara de madeira seria vazia em seu significado, porém, para um cupim passaria a se constituir em alimento, para um carpinteiro, material de trabalho, para uma criança, um objeto de castigo.
3) pelo entendimento da coemergência- aquilo que surge diante de nossos olhos existindo como reflexo de um conteúdo interno prévio. (ex: um templo religioso não passaria de uma construção de tijolos e cimento se não fosse o senso interno do sagrado presente na mente de um devoto) .
Interessante notar que o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), em sua obra “Crítica da razão pura”, provavelmente sem ter conhecimento da perspectiva budista , já utilizava uma visão de vacuidade. Conforme palavras de Marilene Chauí, Kant via “a razão como uma estrutura vazia, uma forma pura sem conteúdos. Essa estrutura (e não os conteúdos) é que é universal, a mesma para todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares. Essa estrutura é inata, isto é, não é adquirida através da experiência. Por ser inata e não depender da experiência para existir, a razão é, do ponto de vista do conhecimento, anterior à experiência. Ou, como escreve Kant, a estrutura da razão é a priori (vem antes da experiência e não depende dela).E continua Chauí: “o que importa é que nada pode ser percebido por nós se não possuir propriedades espaciais; por isso, o espaço não é algo percebido mas é o que permite haver percepção (percebemos lugares, posições, situações, mas não percebemos o.próprio espaço). Assim, o espaço é a forma a priori da sensibilidade e existe em nossa razão antes e sem a experiência.”. (Trata-se de um pensamento muito próximo à noção de maya no hinduísmo).
A prática
Para praticarmos aquilo que o conhecimento budista nos convida a explorar , necessariamente não necessitamos de templos ou locais especiais, embora possam ser bastante enriquecedores. Estar onde estamos passa a consistir a nossa prática. Diante das dificuldades aparentes voltar-se para dentro e fazer o treinamento a fim de flagrarmos as falhas sutis de nossa visão, enquanto vamos aprendendo a criar espaço entre nossos impulsos de escolher ou fazer coisas. Assim vamos nos movendo no lugar onde as pessoas estão , sem querer impor nada, acolhendo-as, amando-as. Tendo compaixão. Ajudando-as a se libertarem de Samsara. (segundo as palavras de Buda a Subhuti no “Sutra do Diamante”, texto sobre as 6 paramitas ou perfeições: “aqueles que tiverem sua fé despertada ao ouvir as sentenças e seções desta Escritura irão acumular bênçãos e méritos inestimáveis”).
O termo “espiritual” vem do latim spiritus, que significa “sopro” e nos remete não só à ideia do movimento do ar como também à visão da criação do universo (o “sopro divino”). Através dessas considerações, espiritualidade torna-se não propriamente um conceito religioso, romântico ou metafísico mas somente uma indicação de um grande movimento criativo, onde todos, sem exceção estamos inseridos. Por isso podemos considerar que toda a Vida seja de natureza espiritual, pois TUDO É MOVIMENTO. A visão Vajrayana reconhece a Mente Primordial como origem fundamental de todo movimento e vê na luminosidade da nossa mente comum a capacidade também de movimentar energia e criar . Tudo aquilo que experimentamos e conhecemos como criação surge de 5 movimentos básicos do prana, energia vital, chamados de lungs (=ventos ou energias), todas qualias provenientes da natureza primordial. São eles, o éter ou espaço, o ar, o fogo, a água e a terra. O domínio sobre esses movimentos torna-se a base de tudo que pode ser criado . Deste modo, o segredo para a conquista de liberdades diante de samsara estaria em devolver à mente o poder de perceber e estabilizar conscientemente os 5 lungs.
Daí a origem das várias yogas, métodos de integração de corpo e mente desenvolvidos por alguns mestres, cujos estágios finais sempre terminam na meditação - a única prática capaz de gerar em nós habilidades na percepção e na condução das energias. Com constantes práticas meditativas poderemos proporcionar relaxamento ao corpo regulando funções orgânicas e gerar em nossas mentes atenção e foco para, com mais facilidade, notar a plasticidade presente na nossa dinâmica bioenergética assim como no ambiente ao nosso redor, e deste modo desenvolvermos habilidades em estabilizar as energias e direcioná-las com propósitos específicos. Pouco a pouco nos tornaremos capazes de perceber quem é o observador, o que é o observado e compreenderemos qual é o olhar que vê o que não está efetivamente na sua frente. Veremos como é interessante encontrar e sentir pessoas queridas dentro do silêncio, entenderemos como a mente vê a mente, para finalmente reconhecermos que sujeito e objeto( “observador” e “observado”) ocultam o verbo ( “o observar”), uma Presença, um Presenciar (“e o Verbo se fez carne..”), uma natureza livre, transcendente à mente, energia, corpo e paisagens de mundo criadas, a operar todos os fenômenos. Este será o estágio final das yogas, chamado samadhi- o despertar para a calma do nirvana(v. sign. em textos complementares , no final do artigo).
Compreenderemos de modo profundo que tudo aquilo que surge em nossas experiências humanas só pode vir da natureza primordial - nada há senão ISSO ( cf. antigo axioma Sufi: “nada há,senão Deus”) ; Tat tvam asi- epigrama sânscrito significando “Tu és isso”. Luminosidade espacialidade, energia são magias do espaço sutil onde a realidade está eternamente presente.
Após repetidas práticas, poderemos nos tornar hábeis em perceber que aflições surgem somente como um impulso de sustentar um mundo de sonho e que ansiedades , preocupações e impulsos de resolvermos problemas através do cômputo de ganhos e perdas nada mais são do que resquícios de energias cármicas em atividade. Tais energias certamente são desgastantes, perceberemos que possuem peso , NOS MANTÉM OCUPADOS, com enorme potencial de gerar distúrbios psíquicos e desconfortos orgânicos, porém, passíveis de serem dissolvidas quando imersas na energia primordial (assim como uma simples gota d’água ao se dissolver no oceano torna-se o próprio oceano).
O sintoma natural da visão aberta e da dissolução dos apegos ao ego passa a ser a leveza, o relaxamento, o destemor ; nos sentimos em paz e sempre prontos, DISPONÍVEIS à Vida. E assim fluímos, nos permitimos, entregamos o nosso forte hábito do controle nas ações cotidianas . Ao desenvolvermos uma visão ampla e, através da meditação, passarmos a estabilizá-la, somente então nos empoderaremos (empowerment : termo amplamente utilizado pela psicologia transpessoal) de forças efetivas para construir nossa realidade através de ações apropriadas e poderemos seguir em fruição pela vida, sem esforços. A partir desta nova perspectiva, tudo passa a surgir de modo espontâneo, proveniente da vacuidade.
A dança dos fenômenos criados pela mente começa a brotar do elemento éter : nesse espaço infinito de disponibilidade surge um brilho criativo em nossos olhos; dos olhos brilhantes (janelas de alma) surge o ânimo e com isso nos INSPIRAMOS ; inspirando , acessamos o elemento ar; este por sua vez, alimenta o elemento fogo a gerar o calor, que em sequência, torna-se combustível para o elemento água, capaz de nos colocar em movimento e ação para, finalmente, a partir de nossos atos, consolidarmos nossas experiências no plano material ( ativação do elemento terra).
Neste contexto, o corpo, através do SNC manifesta-se como apenas um veículo da mente. O mundo surge como uma experiência de nossos sentidos - não existe mundo sem uma consciência de mundo. Do ponto de vista da evolução biológica, um sistema nervoso central com limitados recursos de percepção sensorial traria à mente limitadas experiências de mundo. Por outro lado, um cérebro melhor capacitado serviria apenas como um melhor instrumento a mover os lungs e não para criar consciência pura.
Técnicas de meditação
Shamata (impura e pura); Mettabhavana e Prajnaparamita (vypassana). Após considerar que toda a experiência de mundo se refere à construções de sonhos a partir de uma Mente primordial , porém, envolta pelos véus de Avydia, podemos compreender melhor o objetivo de cada uma das práticas meditativas:
Com Shamata, nos habilitamos a desacelerar o sonho. Através de Mettabhavana, interferimos positivamente no sonho e com Prajnaparamita podemos acordar do sonho, vivendo plenamente a natureza fundamental da mente.
Segundo o lama Samten, o foco inicial das práticas não está em criar estados particulares de mente, mas prioritariamente conseguir criar estabilidade a fim de caminharmos em direção à vacuidade, que é o embrião de sabedoria. Só assim poderemos eliminar os obstáculos gerados carmicamente e mudar a configuração de samsara , transformando-a em “terra pura”. Esta torna-se a função básica de Shamata (Quiescência), cuja base é a não responsividade da mente a quaisquer fenômenos, sejam estes externos ou internos. A quietude se torna geradora de foco, o foco passa a estabilizar a energia.
Shamata impura: Inicia-se com o ajuste de postura (conforto e estabilidade):
1) posição sentada 2) postura das pernas em lótus ou semi lótus 3) coluna ereta 4) mãos sobre o baixo ventre, dispostas uma sobre a outra, palmas abertas, polegares se tocando formando um círculo (mudra da equanimidade) 5) olhos a 45 graus ou olhar à frente (preferencialmente mantendo os olhos abertos) 6) ponta da língua tocando o palato, logo atrás dos incisivos superiores 7) boca fechada ou levemente entreaberta, um leve sorriso .
A atenção ao movimento respiratório espontâneo ou para as diferentes partes do corpo não se torna distração : estamos no foco de um determinado objeto. Aguçamos a percepção da existência de um fluxo de energia a percorrer o corpo mas nos desligamos do que ocorre ao nosso redor. (Ao final da prática tendemos a não nos lembrar do que se passou ao redor).
Shamata pura: Os mesmos passos iniciais anteriores. Porém, estendemos nossa atenção e aguçamos nossos sentidos físicos,”escaneamos” todo o ambiente, mantendo o foco da mente em um estado de presença, de modo a impedir que ela venha a ser arrastada por pensamentos ou imagens. Há consciência plena de tudo aquilo que surgiu durante os momentos de prática.
Mettabhavana (metta= amor /bhavana=meditação). Esta técnica surge como instrumento intermediário para pacificar nossas relações interpessoais distorcidas, pois de outra maneira nossa mente continuaria presa aos impulsos gerados por sementes cármicas perturbando o fluir da prática e nos impedindo de avançar. Fazemos uma relação de pessoas com as quais tivemos problemas. Adicionamos também pessoas queridas e incluímos a nós mesmos. Mentalmente proferimos:
1) Que ( nome) seja feliz 2) Que se afaste do sofrimento 3) Que encontre as causas da felicidade 4) Que reconheças as causas de sofrimento 5) Que atinja a liberação do carma e de toda negatividade 6) Que alcance lucidez 7) Que desenvolva a capacidade de trazer benefício aos seres 8) Que encontre nisso seu equilíbrio e paz
Prajnaparamita (prajna= sabedoria/ paramita= perfeição) . O potencial da criação de sonhos lúcidos (e lúdicos): a compreensão definitiva da Vacuidade e da Luminosidade da Mente Recitamos o mantra: OM GATE GATE PARAGATE PARASAMGATE BODHI SOHA (atravesse, atravesse, atravesse além, atravesse mais além e a iluminação se faz) Contemplamos a confiança na visão através da essência do Sutra da Perfeição da Sabedoria : (Prajnaparamita - ensinamentos do Buda ao discípulo Sariputra)
“Forma é vazio; vazio é forma. Forma nada mais é do que vazio, vazio nada mais é do que forma. Do mesmo modo sensação, percepção, formação mental e consciência são vazias, assim como todos os darmas são vacuidade. Não tem características. São não nascidos e não cessam. Nem impuros, nem livres da impureza. Nem decrescem nem crescem. Portanto a vacuidade não tem forma, sensação, percepção, formação mental, consciência. Não tem olhos, ouvidos ,
Buda do Templo Mahabodhi, junto ao local onde Sidarta alcançou a iluminação em Bodhgaya, na Índia.