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conto das terras do mericó - 2 por Aldenir Dantas *
A criatura mais linda
"Niano, como era carinhosamente chamado, arrepiou-se todo, sentiu a língua travar, as pernas tremerem e a sensação de ter os pés colados ao chão"
Além de incorrigível boêmio, Aneniano era o artista mais famoso de Mericó. Cantava, tocava violão, encantava as moças a alimentava as noites de boemia daquelas redondezas.
Os mais jovens nutriam por ele grande admiração. As moças deliciavam-se com o seu cavalheirismo, seus galanteios, sua voz possante e seu violão que só faltava falar. Além do mais, era um jovem bem apessoado, vestia-se elegantemente para os padrões da cidade, dançava muito bem, conhecia vários poemas de cor e, vez ou outra, escrevia um verso para uma das suas transitórias e incontáveis musas.
Já os mais velhos, pais ou mães das jovens alvos dos seus galanteios, talvez o admirassem e, até, invejassem, mas não demonstravam. Viviam desfiando colares de contas nada elogiosas ao seu respeito:
- Um vagabundo, isso é o que ele é! Um preguiçoso que vive às custas do aposento do pai que lutou na guerra.
- Lutou nada, compadre Boré! Fez só chegar lá e voltar. E só por isso recebe uma bolada do governo todo mês. Mas que o sujeito é um desocupado, enganador das filhas dos outros, isso é verdade!
- Mas cá pra nós, compadre Chico, parece que esse cabra é muito é frouxo. Só tem mesmo farofa e conversa bonita. Se um de nós, no nosso tempo, tivesse um bando de cabocla assim, correndo atrás da gente, a desgraceira era grande! Não era não, compadre?
- Ora se era, compadre! Pelo menos uma dúzia de meninos a gente já tinha espalhado por esse mundão de Deus.
Naquela noite, por volta das doze horas, plantado no patamar da igreja, inspirado e desejando fazer-se ouvir por Jaqueline que, além de bonita, acabara de chegar de Cuité, onde concluíra o Ginásio, cantava ele a todos os pulmões: “Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram...”. E saindo um pouco do transe provocado pela inspiração e pela bebida, abriu os olhos e viu, de fato, uma criatura, bem à sua frente: Pés acima do chão, vestes brancas esvoaçantes e tez acinzentada como se fosse feita de fumaça. Não era a criatura mais linda do mundo. Era aterradora.
Niano, como era carinhosamente chamado, arrepiou-se todo, sentiu a língua travar, as pernas tremerem e a sensação de ter os pés colados ao chão. Somando suas últimas forças, jogou o violão para o alto fazendo-o espatifar-se escada abaixo e, desgrudando-se de onde estivera plantado, lançou-se em uma corrida tresloucada para casa.
A carreira foi tamanha que nem conseguiu parar para abrir a porta. Derrubou-a com o ombro e caiu quase sem fôlego, sem fala, no chão de tijolo aparente da sala, provocando grande alvoroço na família e na vizinhança.
Alguns meses depois, Aneniano arrumou um emprego de auxiliar de serviços gerais na prefeitura e casou-se com a moça que, há quase uma década, enganava com um noivado que parecia não ter fim.
Nunca mais tocou violão, nem cantou, nem bebeu, nem saiu à rua depois das oito horas da noite.
* Conto integrante do livro inédito Histórias Mal Contadas das Terras do Mericó. Aldenir Dantas é poeta e escritor, especialista em Ensino à Distância e mestrando em Ciências da Educação.