Biblioterapia na cadeia pública de Ceará-Mirim
Postado em 31 May 2019 19 58 Cultura Popular

“Biblioterapia pode ser tanto um processo de desenvolvimento pessoal como um processo clínico de cura,[...] com o propósito de promover a integração de sentimentos e pensamentos a fim de promover autoafirmação,  autoconhecimento ou reabilitação” Richard Marcinko



Debaixo de uma chuva torrencial numa manhã do dia 30 de maio 2019 – aniversário de minha mãe e dia em que Joana D’arc foi queimada viva na fogueira (e inocentada depois de morta) adentramos a Cadeia Pública de Ceará-Mirim/RN, eu, uma arquiteta, um amigo escritor e uma amiga representante dos Direitos Humanos, que realiza um importante trabalho de garantia de direitos. Inaugurada em 2018, com capacidade para 600 presos e já extrapolada sua lotação - contando com mais de 900 -  fomos bem recebidos pelo diretor e encaminhados à biblioteca do presídio. Fiquei surpreendido com a boa quantidade de livros no acervo. O objetivo dessa visita também era levar cerca de novos 100 livros através do programa Novos Rumos, do TJRN.  Bibliotecas são equipamentos relativamente recentes no sistema carcerário brasileiro e ainda hoje elas estão presentes em apenas cerca de 40% dos presídios, de acordo com pesquisa da UFMG. Em outros  países isso acontece há décadas.



Após essa visita à biblioteca fomos encaminhados para uma das salas de aula da unidade prisional. Nessa sala havia um gradeado pesado que nos separava dos presos. Pedimos para ficar exatamente no mesmo ambiente que eles, para um contato mais humano e sem grades, ao que fomos atendidos pelo diretor do presídio e, imediatamente, um dos agentes
penitenciários abriu o cadeado e ficamos frente a frente com cerca 40 presos fardados e sentados nas carteiras da sala de aula, que tinha um aspecto limpo e semelhante a uma escola organizada e dita normal.



Dei um “bom dia” correspondido por eles de forma amistosa, sonora e uníssona e comecei a contar como a leitura foi fundamental na minha formação como ser humano e inclusive no meu sustento material. Mais que isso, confessei a eles, muitas vezes encontrei sentido e grande prazer na vida através da leitura de tantos bons livros, centenas, viajando maravilhosamente na imaginação de outras terras, pensamentos, mil soluções de problemas alheios – e por que não meus?, jardins que se bifurcam, olhares que se cruzam para sempre.



Li então o conto “Tínhamos passado a tarde toda Descastanhando cajus” – do meu livro “Nove contos serranos” que inclusive passou a fazer parte do acervo da referida biblioteca do presídio. Esse conto vem da minha memória afetiva de infância e serviu como forma de todos ali voltarmos ao tempo de criança, onde a inocência falava mais alto. Em seguida cantei a música “Minha Alma”, do Rappa e “Chico Caetano”, de minha autoria (disco Seridolendas), ressaltando que este era um senhor que morava no Abrigo de Idosos de Currais Novos e que tinha cem anos de idade e muitas histórias para contar. Recitei ainda o maravilhoso poema “Um bairro chamado lagoa do mato” do mestre mossoroense Antonio Francisco e, de repente, as paredes da prisão desapareceram e começamos a sentir toda a liberdade ao sentir o cheiro do mato e “comer melancia e depois se banhar nas águas barrentas daquela lagoa, a vida era simples, barata, tão boa que a gente nem via o tempo passar...”


Wescley Gama




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