DIÁLOGO ENTRE A CAPOEIRA ANGOLA E PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: VIOLÊNCIA HORIZONTAL X O HÁBITO CORTÊS
Postado em 24 Jun 2016 14 47 Principal



É sempre desafiador escrever sobre capoeira angola. Trata-se de uma expressão cheia de mistérios, que tem suas linguagens próprias. Hoje alcançou cidadania mundial. Daí vem os perigos. Os velhos mestres reclamam da apropriação indevida do nome e imagem da capoeira por pessoas despreocupados em captar os verdadeiros fundamentos da arte, fazendo dela mais um modismo que se pode dispor na vitrine capitalista. Devido a estas práticas, o legado da capoeira angola como expressão autêntica de liberdade e resistência poderia estar ameaçado. 

A Capoeira Angola, que tem fundamento mítico em “Besouro Mangangá”, o negro “malcriado” que não se submetia à lei do branco dominador, poderia estar sendo cooptada e enfraquecida em suas bases negro-africanas? Os discursos que a rodeiam poderiam lhe impor uma coleira domesticadora? 

Para alguns mestres guardiões, o que está em jogo são os saberes ancestrais que podem se perder no tempo - e num mundo cada vez mais veloz, acostumado a modismos de prateleiras, indisposto a olhar para trás e que assumiu irrefletidamente uma norma mudancista mediada pelos apetrechos tecnológicos e por alguns aspectos da cibercultura. Por isso mesmo, não se pode prescindir das reflexões honestas que pensam a capoeira sob uma perspectiva de resistência. Esta foi a proposta do nosso trabalho quando acreditamos que a pedagogia freireana poderia dialogar com alguns aspectos da capoeira angola.

Paulo Freire, na obra “pedagogia do Oprimido” traz vários conceitos-chave que ajudaram sociedades pobres na América Latina e na África na construção de sua libertação. Afirma o educador que os oprimidos muitas vezes estão submetidos a uma ordem injusta que lhes frustra o atuar, produzindo uma espécie de violência horizontal com que agridem os próprios companheiros. Este aspecto da obra de Paulo Freire reveste-se de especial importância, pois testemunhamos no Brasil o aumento galopante da violência rural e urbana, com índices absurdos de homicídios e, consequentemente, a banalização da vida. Juntem-se a isto, as ideologias da competição exacerbada, seja no mercado de trabalho, nos esportes ou nas relações sociais e a reificação das relações humanas em que as pessoas usam outras pessoas como coisas para atingirem seus objetivos.

A Capoeira Angola, segundo o mestre Pastinha, seu grande expoente, é “amorosa, não é perversa. É um hábito cortês que criamos dentro de nós, uma coisa vagabunda”. Já o Mestre João Pequeno de Pastinha fala que encontrou na capoeira angola uma luta que se vence sem precisar bater no outro. Corroborando a tese, mestre Moraes canta em uma das ladainhas que “se vencer uma batalha é matar o perdedor, na guerra que eu vivo em vida não me sinto ganhador, pois sem matar ou ferir eu me sinto vencedor”. Longe de querer abranger todos os conceitos implicados nestas máximas, permito-me dizer que, nestas falas dos mestres, visualizamos a atitude cortês como norma na capoeira angola. Vemos grande potencialidade neste mandamento para a educação dos impulsos de violência e competição desarrazoada. De modo estendido, podemos apontar para as atitudes de compreensão, respeito e tolerância. 

Quando não se quer ferir o outro, mesmo numa arte de jogo corporal, transcende-se a cultura da violência horizontal e abre-se o olhar para o aspecto político ligado à competição. Vislumbra-se uma violência, desta vez, vertical, a qual temos que nos unir para criar estratégias de resistência.

Pessoas frustradas nos seus projetos podem se revoltar e se desconhecerem umas às outras. O hábito cortês implica no zelo, compreensão e cuidado com o outro, não só na roda de capoeira. Os elementos de resistência dessa arte criam um campo para a resiliência, que é a capacidade de, mesmo num cenário desfavorável, identificar e se alimentar dos aspectos positivos das coisas, fortalecendo a esperança, a amizade e a solidariedade para encontrar saídas possíveis (o inédito viável, de Freire).  

O diálogo corporal no fluxo do ritmo dos instrumentos e dos corridos reverbera na esperança de Paulo Freire de que os oprimidos quebrem a cultura do silêncio, resgatem “sua palavra” e tornem-se seres autênticos e felizes. Como diria ele: tornem-se seres para si.


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JOMAR MORAIS
25 Jun 2016 02 21
Belo ensaio, caro Jorge!
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