OUTRO OLHAR
por Jomar Morais
O QUE FAZER COM
A MINHA DOR?
Uma lenda oriental relata que, durante a visita de Sidarta Gautama, o Buda, a um povoado no norte da Índia, há  2600 anos, uma mãe apresentou-lhe uma proposta inusitada. Triste e inconformada, a mulher queria que o iluminado usasse seus poderes mentais para devolver à vida o seu único filho, que falecera dias antes.

Buda ouviu o relato queixoso e, ao final, impôs uma condição para que o milagre acontecesse: era preciso que  aquela mãe lhe levasse um grão de mostarda recolhido em uma casa onde jamais a dor tivesse entrado.

Tomada pela esperança, a mulher percorreu, célere, toda a vila, mas no fim do dia não havia alcançado o seu intento. Nos dias seguintes, repetiu a busca em vilas vizinhas e outra vez deu de cara com pessoas que choravam a perda de entes queridos, doenças graves, frustrações familiares,  etc Depois disso, a mulher desapareceu e não mais se ouviu falar de seu périplo para encontrar a semente.

Anos mais tarde, em outro vilarejo da Índia, Buda a reconhece no meio da multidão que o cercava e, ainda compassivo com a sua dor, pergunta-lhe se, finalmente, trouxera o grão de mostarda necessário à ressureição de seu filho.

Não - diz a mulher, que agora sorri. - Mas isso já não é necessário. Durante todos esses anos, Iluminado, bati à porta de ricos e pobres, doutos e ignorantes, desvalidos e poderosos, e em todas elas recolhi relatos de infortúnio e desconforto. Compreendi então que a minha dor não é minha, é da vida.

Em nosso mundo escravizado ao hedonismo (o culto ao prazer como valor soberano), rememorar a velha lenda budista pode ser o primeiro passo para a liberação do sofrimento. Descobrir que a dor é um evento transpessoal, ajuda-nos a atribuir-lhe novo significado e a perceber o seu papel essencial no crescimento dos seres.

O progresso material até aqui tem sido, basicamente, o resultado do esforço do homem para eliminar a dor - o que torna autoevidente a importância dessa indesejada. Mas já caminhamos o suficiente para entender que, se a administração e o alívio da dor se fazem necessários, a sua erradicação nos roubaria o mais eficiente indicador de nossos desequilíbrios físicos e psicológicos e a mestra insistente que jamais desiste de nos conduzir à reflexão e à reinvenção de nós próprios.

O hedonismo exacerbado, que corrompe o prazer natural, fonte de fruição da vida, transformando-o em mera rota de fuga da dor, no fenômeno das compulsões, é contrário à evolução.

A tolerância zero à dor física, logo abafada com analgésicos e relaxantes, impede a leitura de sinais do corpo e abre portas à ação silenciosa de doenças que só em estágio avançado serão perecebidas.

A falácia de que a felicidade é euforia e não comporta frustrações, logo encobertas por ansiolíticos e antipressivos, mantém-nos na imaturidade emocional e nos retira a chance de nos realizarmos espiritualmente em saudável processo de autoconhecimento, livres do medo de viver.

Como reconhece o poeta, a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional. Uma dor compreendida e administrada é sempre um portal que se abre para a cura e a libertação.
[Publicado na edição do Novo Jornal de 06/05/14 ]
A dor é inevitável, mas o sofrimento é sempre
resultado de nossa incompreensão dos fatos