Postado em 31 Jul 2015 03 09 Textos Anteriores
É impressionante o volume de
afeto reprimido que emerge das
palavras e atitudes dos bêbados
por JOMAR MORAIS
Há séculos sabemos: quando o álcool entra, a verdade sai. Apesar disso, a London School of Hygiene and Tropical Medicine resolveu fazer um estudo para dar base científica a essa evidência e constatou que as bebidas alcóolicas não alteram o pensamento de uma pessoa, apenas rompem sua inibição, o medo de expressá-lo.
Lembra daquele amigo que ficou de porre só para declarar à amada sua paixão? (Bom, isso poderia ter acontecido com você, mas, sóbrio, prefiro não ser inconveniente...)
E aquele parente hétero que “virava” gay sempre que tomava umas e outras?
Existe o outro lado, não é? Quem não tem uma história de amigo pacífico que vira uma fera depois de algumas cervejinhas? Quanta gente honesta e trabalhadora acabou trancafiada por cometer agressões, e até homicídios, depois que a “marvada” subiu a cabeça?
Já fui ameaçado de morte, numa estação de metrô, porque esbarrei em um bebum violento, às 6 da manhã. Em compensação, já fui abraçado, beijado, reverenciado... por muitos bêbados – de familiares a amigos de Redação, de gente humilde com quem me relaciono em meu ativismo social a desconhecidos que, sentindo-se estimulados por meu hábito de ouvir as pessoas, acabam abrindo o coração para mim.
É nesse ponto que quero fixar-me. Este não é mais um texto contra os males da bebida – esse perverso negócio milionário. É só um registro sentimental de um homem sóbrio tocado pela dor de um bêbado que no último final de semana, dentro de um ônibus, escolheu-me para desabafar, olho fixo em meus olhos como se procurasse minha alma.
Esse anônimo que eu nunca vira antes, chamou-me “amigo”, falou de amizade, de família, da desconfiança das pessoas... Em resposta, disse-lhe duas ou três palavras e o resto falei com um olhar de solidariedade. Aí ele sorriu, beijou minha mão e se foi em direção à segunda-feira de trabalho, rosto carrancudo e sentimentos contidos.
Impressiona-me, nas conversas de bêbado, a montanha de afeto reprimido que emerge das profundezas do ser. Se o álcool não muda a nossa essência, como garante o estudo da faculdade londrina, é confortador atestarmos nessas horas que há abundância de amor nas almas daqueles que se obrigam à aspereza, à rigidez e ao formalismo no cotidiano, engessados por papéis e preconceitos.
Dizem que as pessoas bebem para esquecer. A mim parece que os bêbados bebem, principalmente, para terem voz, para serem eles próprios em suas explosões de sentimentos e seus gritos de socorro. Talvez a maioria – em um mundo que valoriza a força, o prestígio e o dinheiro, em detrimento do carinho e da entrega – beba para amar e se sentir inteiro na fragilidade humana.
Quem sabe um dia, apoiado em valores sociais mais nobres, ninguém precise envenenar o corpo para expressar sua ternura ou sua fraqueza. Até lá, no entanto, mesmo lamentando a circunstância, prefiro levar a sério todo irmão que expressa sua verdade encharcado num pileque.
[ Publicado na edição do Novo Jornal de 28/07/15 ]
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Jorge Brana
08 Aug 2015 06 00
Grato pelo texto Jomar. Tocou-me.