Nós, a realidade e o sofrimento
Postado em 26 Oct 2016 16 44 Textos Anteriores











Os eventos da vida escapam ao nosso controle,  
mas podemos influenciar sua mudança, se  
usarmos a energia desperdiçada em queixas  



por JOMAR MORAIS


Eis um dado que pode ser comprovado no dia a dia: quando aceitamos a realidade, o sofrimento cessa. Mas, então, por que resistimos tanto em aceitá-la?
Não se trata de simples questão existencial. Nossa postura de batermos de frente com aquilo que existe, recusando-nos a admitir a sua existência, tem reflexos na vida coletiva e pode até ser um fator decisivo no movimento da sociedade.

Quem lembra dos revolucionários de bar dos anos 70 e 80?

Antes de falarmos um pouco sobre eles, é bom ressaltar: a aceitação não é uma atitude passiva, de submissão incondicional a pessoas, coisas e circunstâncias. É apenas compreender que aquilo que nos incomoda faz parte da vida. Se não nos agrada e se também não traz benefícios a outras pessoas, podemos empregar nossa energia para promover a mudança e, novamente, aceitar o resultado possível.

Pois bem, os revolucionários de bar eram especialistas em criticar a dura realidade brasileira daquela época e apresentar soluções definitivas para o país. Mas eram raros os que colocavam a mão na massa, agindo para mudar a situação criticada. A maioria apenas desperdiçava energia, desabafava, realizava catarses na mesa de um bar e, em seguida, voltava pra casa de porre.

Hoje, a nova geração dos revolucionários de bar bate ponto nas redes sociais, enquanto os veteranos vivem como “os nossos pais”, com dizia a canção de Belchior. Alguns estão em casa, vendo TV e contando o “vil metal”. Outros se tornaram chefes e patrões autoritários e “exploradores”. Outros mais se tornaram vassalos da elite econômica e hoje escrevem coisas em que não acreditavam, fazem coisas que combatiam movidos pelo medo de não sobreviverem. Só poucos, muito poucos, estão aí agindo pela mudança, empenhados na construção de um mundo melhor.

Mas, veja, qualquer um de nós pode ser um revolucionário de bar numa vida pessoal que até pode não ter bar e estar cheia de teorias, psicologia e crenças espirituais. Quando a realidade surge, impactamos e caímos em desespero se ela não corresponde à nossa expectativa.

E por que isso se repete tão amiúde? 

Penso que uma boa resposta é a do jovem lama Michel, aquele menino brasileiro que, anos atrás, foi notícia ao ser levado por um monge para as montanhas de Dharamsala, na Índia, com a permissão de seus pais, para tornar-se um iniciado budista. 

Em palestra que circula na Internet, Michel afirma que perdemos a visão correta da realidade ao insistirmos em sobrepor a elas nossas imagens feitas de experiências anteriores e expectativas. A realidade é fluxo, está em constante mudança e, com certeza, não corresponderá ao registro de uma experiência passada ou de uma expectativa construída sobre nossos desejos. Nosso apego à imagem arquivada em nossa memória e não a aceitação da realidade metamorfoseada gera aflição.

No eterno movimento, os eventos acontecem como resultado de incontáveis causas e condições sobre as quais não temos controle. Mas, apesar disso, podemos influenciar sua mudança se, aceitando a sua existência, aplicarmos sobre eles, com atitude e ação, a energia que temos desperdiçado em queixas e devaneios.  

[Publicado na edição do Novo Jornal de 25/10/16 ]

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