Postado em 04 Nov 2016 17 10 Textos Anteriores
Existe diferença entre o carcereiro de pássaros
e o estressado que estressa cães e gatos,
manipulando-os como bichos de pelúcia?
por JOMAR MORAIS
Chego à praça às 6h e me deparo com uma cena do passado: gaiolas penduradas em postes e, dentro delas, passarinhos silenciosos expostos ao Sol do amanhecer. Em um canto, um grupo de homens – de adolescentes a senhores maduros -, a maioria com sobrepeso, entretido em conversas amenas e indiferente às máquinas de ginástica à sua frente, benfazejas e gratuitas. Meia hora depois, levantam-se, cobrem as gaiolas com capas e retornam para suas casas, levando consigo as pobres aves de que se fizeram carcereiros.
Passeio pelo Alecrim e reencontro um negócio do tempo dos meus avós, que eu julgava varrido pelos ventos do desenvolvimento e da consciência ética: lojas entupidas de gaiolas com os mais belos pássaros da fauna regional, prontos para serem vendidos, e, na rua, galinhas aglomeradas em cubículos, à espera da feira que só começará no dia seguinte.
Percorro bairros nobres e a periferia e percebo a multiplicação das pet shops, com suas rações transgênicas, seus aparelhinhos, suas almofadas, seus remédios e também suas gaiolas, repletas de cães e gatos recém-nascidos, à espera de quem os compre.
Aqui e ali vejo clínicas veterinárias, hotéis e até hospitais de bichos e, ao chegar à casa de um familiar, experimento o ápice desse périplo sobre a nova relação do homem com os animais: o cachorrinho da casa toma 20 comprimidos ao dia, sua comida é receitada por uma nutricionista, semanalmente ele recebe a visita de um enfermeiro para a aplicação de soro vitaminado e, claro, já esteve internado várias vezes em hospitais veterinários, onde foram diagnosticados seus males no fígado e nos rins e prescrita a saraivada medicinal. Por mês, gasta-se com o cachorrinho bem mais do que um gari ganha para manter uma família de quatro, cinco... sete pessoas.
À primeira vista podemos dizer que a nossa reaproximação aos animais e os cuidados que passamos a lhes dedicar é um sinal de que nos tornamos mais refinados e amorosos. E é, mas nem tanto assim.
A proximidade aos bichos, não raro, reflete a solidão do homem e a sua incapacidade de se relacionar com outros humanos, por avareza e medo de compartilhar com quem pode não lhe ser servil. E o excesso de zelo e escassez de naturalidade nessa relação, que hoje sustenta um mercado saturado de enganos, é uma amostra do mal que podemos fazer aos animais quando os tornamos reféns de nossas pulsões egoicas e neuroses.
Nosso estilo de vida nos adoeceu. Estressados, perdemos a qualidade de vida. E é isso o que temos oferecido aos bichinhos que, delicadamente, aprisionamos: estresse, drogas e o inferno de nossas sofisticações, fazendo-os sofrer, longe de sua saudável naturalidade.
Existirá diferença entre o carcereiro de pássaro e o estressado que estressa cão e gato, manipulando-os como se fossem bichos de pelúcia? Penso que, em ambos os casos, o que está em foco é o nosso prazer egoístico. Não há compaixão legítima, que considera o sentimento do outro.
Soltem os bichos, por favor.
[ Publicado na edição do Novo Jornal de 01/11/16 ]
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