Você tem medo de quê?
Postado em 07 Jan 2017 03 30 Textos Anteriores













Não é o futuro que nos atormenta. É a nossa ânsia de  
controle, que nos leva a preencher de passado o   
desconhecido para o controlarmos através do medo  


por JOMAR MORAIS



Na Idade Média, o rabino, filósofo e matemático francês Levi ben Gershon, conhecido como Gersônides, teve a clareza de afirmar sobre o medo em um tempo dominado pelo medo: “A paz que deriva do medo é o oposto do que é paz”. 

As palavras de Gersônides aplicam-se também – ou mais ainda! – ao nosso século e a este 2017 nascente tingido de maus presságios. 

O medo é, talvez, o último recurso em nossa tentativa de controle. Mas em vez de nos entregarmos ao desespero que lhe é inerente, não seria melhor nos perguntarmos de que realmente sentimos medo, o que nos impede de nos entregarmos à vida, abrindo mão dos controles asfixiantes?

Costumamos afirmar que tememos o desconhecido. Seria isso o que coloca tanta gente em oposição ao novo, ao que rompe padrões, ao que parece afrontar a ordem e abalar as nossas referências? Seria isso o que nos faz imaginar que criatividade e ordem, harmonia e entropia se movem em paralelas infinitas e não no emaranhado dos contrários dos ciclos da vida e da história?

É outro rabino, este contemporâneo e brasileiro – o rabino Nilton Bonder – que vem aclarar, em parte, minhas dúvidas e temores de início de ano. 

Em seu livro “A Arte de se Salvar”, ele nada contra a corrente. Não é o novo e nem o futuro que nos atormentam, diz. “Nossa antecipação, nossa preocupação, nossa angústia e nosso controle é que não toleram lidar com situações nunca antes experimentadas sem buscar preenchê-las com vivências passadas”. Ou seja: “Tememos não o que desconhecemos, mas tudo o que de doloroso e amargo do passado possa ser evocado para preencher nossas antecipações”.

Essa é uma situação que emerge de nossa rotina autocentrada. “Querer impor ao desconhecido a condição de conhecido é próprio do controle. E para controlar o desconhecido utilizamos o mecanismo do medo”, diz o autor. “Buscamos esse refúgio porque ele preenche o escuro do futuro com possibilidades conhecidas e a possibilidade de perda com o apego”. 

Ao querer limitar o desconhecido, o tornamos ilimitado e infindável – e também terrível! Imaginamos que com o medo saímos da órbita do mal porque o antecipamos e o bloqueamos no temor, mas tudo o que conseguimos é cair em seu superlativo, pois a representação do caos é pior do que o caos e o medo do infortúnio pior que o infortúnio.

Com surpreendente clareza, Bonder nos apresenta o hábito de preencher o desconhecido com temores do conhecido como um vício de vida. E arremata, oferecendo-nos um rumo: 

“É comum pensarmos que o caminho para desfazer-nos de um vício é o controle. Não percebemos que com isso o aprofundamos ainda mais, já que todo vício é em si uma manifestação exagerada de controle. (…) Se não quisermos promover apenas a transferência de um vício a outro, deveremos dizer aos viciados: descontrolem-se. Da mesma forma, o vício de lidar com o desconhecido pelo medo do conhecido deve ser vencido pelo descontrole”. 

Isto é: pela entrega de nossa vida à vida, gerando frutos de trabalho e alegria numa perspectiva transpessoal e holística.

[ Publicado na edição do Novo Jornal de 03/01/17 ]

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