Postado em 03 Feb 2017 21 31 Textos Anteriores
Sustentamos um Coliseu sem fronteiras no
qual nos perdermos em catarses e receios.
Não há nada a esperar senão o declínio?
por JOMAR MORAIS
Outra vez em Roma, outra vez no Coliseu, a fantástica arena inaugurada no ano 80, cujas ruínas se tornaram o principal cartão postal da Roma contemporânea. Erguido a partir de pedras transportadas do Templo de Jerusalém, após a derrocada da rebelião judaica no ano 70, o Coliseu impressionava a Antiguidade com sua estrutura gigantesca, três níveis de arcos, 80 entradas e 50 mil assentos. Por ordem do imperador Tito, 100 dias de jogos, combates e performances, envolvendo 5 mil animais, marcaram a abertura da arena.
Ninguém entra no mesmo rio duas vezes, já dizia o filósofo pré-socrático Heráclito para atestar o movimento da vida. O Coliseu que vejo agora não é o mesmo que apreciei, pela primeira vez, em 1982, e em outras ocasiões. E isso não diz respeito apenas à sua estrutura física, sujeita à lei de entropia. O mundo mudou, eu mudei.
Para mim, hoje, não há como observar os restos do gigante sem vê-los como uma mensagem ao nosso tempo.
Costumamos identificar o Coliseu com os mártires do Cristianismo nascente que aqui tombaram sob a fúria de leões famintos. Sabe-se agora que mais cristãos foram sacrificados no Circo de Nero, junto ao Vaticano, e no Circo Máximo, o enorme hipódromo que se estendia entre as colinas Palatino e Aventino, cujos espetáculos, sempre sangrentos, reuniam até 250 mil espectadores e podiam ser assistidos pelo imperador da sacada de seu palácio. O Coliseu, no entanto, é mais que esse emblema.
No segundo século, intelectuais romanos mostravam-se preocupados com aqueles espetáculos em que milhares de romanos, bestializados, aplaudiam a tortura e morte de escravos e prisioneiros, enquanto eles próprios se engalfinhavam em meio às perdas e ganhos das apostas. Alinhados com Sêneca, Cícero e outros pensadores e artistas latinos de ampla visão ética e estética, eles entendiam que o que se passava no Coliseu e no Circo Máximo sinalizava a decadência espiritual de Roma e o ocaso do império. Estavam certos.
Nas arenas os romanos aplaudiam e respaldavam a crueldade que seus centuriões impunham aos povos dominados e compactuavam com a base legal sobre a qual o poder dos tribunos e o preconceito conduziam a crimes hediondos. É significativo que, na Roma antiga, os espetáculos de horror tenham começado como empreendimentos privados, em seguida absorvidos pelos políticos e, por fim, estatizados – uma forma de prover o circo indispensável para entreter a plebe e mantê-la sob controle.
Ao reencontrar o Coliseu de Roma, penso no MMA, nos esportes violentos que se tornaram negócios bilionários em nosso tempo, penso na violência crescente do aparelho de Estado, aplaudida e reivindicada pelas massas atemorizadas, penso no barulho midiático espalhando o medo e produzindo lucros, penso nos arautos de toda intolerância e em todas as formas de ignorância que sustentam um Coliseu sem fronteiras no qual nos perdemos em mil catarses e receios. Então, questiono minha alma perplexa: teríamos chegado ao ápice de nossa civilização? Iniciamos a descida? Não há mais a esperar senão o declínio?
[ Publicado na edição do Novo Jornal de 31/01/17 ]
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