Pietro e Pica
Postado em 10 Feb 2017 17 43 Textos Anteriores











A santidade não é gratuidade que vem do Céu.  
Ela emerge em meio às contradições humanas  
como lótus que coroa um coração despojado  


por JOMAR MORAIS


Há dias percorro a Úmbria, região central da Itália, onde busco refúgio e clareza em paisagens que no passado acolheram Giovanni di Pietro di Bernardone – Francisco Assis –, meu santo doidinho preferido, inspiração de meus delírios iconoclastas. 

Estou no lugar certo no momento certo. A Úmbria está deserta de turistas, afugentados pelo frio do inverno e o medo provocado pelos quatro terremotos que atingiram a região entre agosto passado e o dia 2 de janeiro. Hotéis vazios, sítios históricos e religiosos sem o burburinho dos visitantes apressados. A calmaria e a solidão são quase indispensáveis para quem quer sobrepor à viagem exterior um périplo interno, reflexivo, em que se pode sorver a seiva do silêncio e do mistério de onde emergem as paisagens.

Na verdade, meu “caminho de Francisco” começou ainda em Roma, no Lácio, diante da basílica de São João de Latrão. Lá, onde ele teve o seu grande choque de realidade, no primeiro enfrentamento, terno mas firme, com o fausto  e os jogos de poder de uma Igreja tão distante de sua visão ingênua do Evangelho.

Na Úmbria, estive em Perúgia, onde o jovem Giovanni, feito prisioneiro, começou a livrar-se das amarras dos sonhos de glória, ao contato com a própria dor e a dor do outro, e considerei o valor das desilusões para salvar-nos dos pelourinhos do desejo. Estive em Espoleto, onde o promissor Giovanni finalmente decidiu abandonar os companheiros de expedição militar, abraçando o custo do confronto com seu pai, e refleti sobre o showdown de nossos conflitos, aquele momento em que as expectativas ruem e as dúvidas cessam, levando-nos a virar a mesa a qualquer preço, seguindo nosso impulso mais profundo. Em Gúbio, onde um Francisco rompido de vez com a lógica da normalidade já se tornara capaz de apascentar lobos, pensei no poder dos corações desarmados e na imensa herança dos mansos: a Terra inteira, a riqueza infinita da vida.

Por último, em Assis, três dias nas matas e grutas do monte Subásio, no vale de São Damião, na Porta Moiano e mesmo na Porciúncula esmagada sob a imponência de uma basílica soberba tive uma vivência avassaladora que derrubou metade de meus conceitos, pretensões e ilusões.

Sobre esse Francisco, completamente pobre, “pazzo” e incompreendido até hoje, falarei depois. Por enquanto, basta-me que eu não tire os pés do chão e recorde que a santidade, como a clareza, não desce de planos sem máculas, mas emerge do pântano da condição humana, como lótus que coroa o coração e o propósito. 

Para mim, isso é emblemático nas estátuas de Pietro di Bernardone e sua mulher, Pica, que desde os anos 1980 recebem os que visitam a antiga casa dos pais de Francisco – uma homenagem tardia, mas significativa. “Sem eles o mundo não conheceria o santo de Assis”, diz a legenda aos pés da escultura.

Pietro era egóico e avaro, tinha sede de fortuna e poder, meta que Giovanni perseguiria até os 23 anos. Pica era amorosa e compassiva, entendia o delírio de Francisco e tornou-se sua cúmplice, mas não avançou com ele, atada à tradição e à norma. No coração de Francisco, essas forças representadas nas polaridades distintas do pai e da mãe disputavam e o esmagavam até o momento de seu showdown e o ponto de não retorno. Quando isso se deu, pôde alçar vôo sobre o abismo.

Qualquer semelhança com outros humanos, não é mera coincidência.

[ Publicado na edição do Novo Jornal de 07/02/17 ]

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