Postado em 16 Feb 2017 17 54 Textos Anteriores
Escultura moderna em Assis, Itália: nu,
Francisco deixa para trás o nome, a família,
a herança e um mundo centrado no egoísmo
por JOMAR MORAIS
Os tempos já eram outros e, em vez de barro, pedras e ironias atirados sobre aquele punhado de jovens estranhos, vestidos com túnicas rústicas que pareciam velhos sacos de estopa, agora multidões acorriam a Giovanni di Pietro di Bernardone para ouvir-lhe a palavra mansa e alegre, receber seu abraço, implorar uma cura...
Então Masseu, um dos fradinhos mais próximos ao líder, disparou a pergunta inquietante:
- Por que tu, Francisco? Por que Deus escolheu a ti, que não és bonito, não és culto, não és fluente?
Francisco só responderia no dia seguinte, após orar e refletir:
- Para confundir, Masseu! Deus escolheu a mim, pecador e inculto, para confundir os poderosos do mundo.
Enquanto estive, dias atrás, meditando nas mesmas grutas do Monte Subásio, na Úmbria, onde Francisco se refugiava, junto com seus fradinhos, para ouvir a “voz”, a lembrança desse diálogo de 800 anos arrastou-me às profundezas e deu-me a certeza de que tudo o que tenho elaborado sobre a vida e o pensamento franciscanos passa longe do real propósito e da radicalidade do “pazzo” de Assis.
Na impossibilidade de nos despojarmos de nossos interesses e dos medos que os sustentam, apoderamo-nos dos conteúdos dos que foram além – nossos santos e heróis – e os desfiguramos em narrativas que lhes corrompem a essência, a fim de que caibam no horizonte estreito de nosso utilitarismo. Se aconteceu assim até com o senhor de Francisco – Jesus -, não haveria de ser diferente com ele.
Ainda em vida Francisco viu sua Ordem dos Irmãos Menores afastar-se de seu ideal de viver o amor mediante um Evangelho vivo, centrado no homem e não na norma. Os “juristas” de São João de Latrão acabariam por esmagar o sonho ingênuo de Giovanni que, no fundo, afrontava uma Igreja enroscada com o poder e os poderosos, utilizando-se para isso dos “intelectuais” da Ordem e de seus ministros burocratas, sempre ciosos de não “confundir”.
Nas grutas do Subásio, especialmente na gruta de Masseu, onde demorei-me em contemplação solitária numa tarde gélida, a 2 mil metros de altitude, afundei na escuridão de onde procede a luz e vi ruirem meus disfarces, trincando para sempre o eixo de meus conceitos.
Não! Francisco não é a inspiração de uma simplicidade estilizada e seletiva, baseada no poder do dinheiro e nas cercas que nos separam. Não! Francisco não é a seiva das migalhas que ofertamos aos desvalidos para aliviarmos nossas culpas e comprarmos “salvação” em dias e horas ansiosos. Não! Francisco não é a conciliação entre nosso desejo de poder e fortuna e um cristianismo – ou mesmo um humanismo – formal, sob a crença de que a radicalidade evangélica é impraticável hoje.
Não! O ideal de Francisco não se contrapõe ao progresso das formas, à tecnologia e à eficiência, mas é inconciliável com a ganância, a indiferença, o materialismo e a exploração.
Nas grutas do Subásio vi Francisco atirando a bolsa de moedas ao chão, em São Damião, e usar as próprias mãos para reformar a capelinha. Vi Francisco vivendo o dia a dia do mendigo e o do leproso, tornando-se um com a Dama Pobreza. Vi um “pazzo”, pobre e puro. Um louco confundindo nossa normose avara e infeliz.
[ Publicado na edição do Novo Jornal de 14/02/17 ]
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Jorge Brana
17 Feb 2017 00 21
Muito esclarecedor o texto sobre Francisco. Este ideal franciscano foi muito distorcido, cooptado para se adequar s nossas convenincias.Mas a mensagem sublime do amor de Francisco, relembrando o Mestre Maior continua firme.