O grito do poeta
Postado em 20 Jun 2017 03 43 Textos Anteriores











O mundo objetivo é expressão de   
nossas construções  mentais, tão  
consistentes quanto a bruma da manhã  

O Grito, tela do norueguês Ervin Munch  


por JOMAR MORAIS


O Facebook entrega-me uma postagem original. Um conhecido advogado da cidade, poeta reconhecido nos circuitos culturais, no dia de seu aniversário escreve e divulga uma poesia para si mesmo. São versos bem-humorados e eu me entusiasmo com essa alegria criativa, deixando embaixo minhas congratulações. Pelo número de “likes” e comentários anexados, não há dúvida: como eu, muita gente se divertiu. 

Estávamos todos distraídos.

No dia seguinte, o mesmo Facebook entrega a verdade sem cor e sem brilho. Em um breve texto, o poeta expõe sem rodeios a sua dor. Está sofrendo muito, sob depressão medonha. Não sabe mais como lidar com a sua “esquizofrenia”, tenta escapar à tentação do suicídio. 

O poeta está só em seu bunker escuro e não tem forças para abrir a porta. Os versos a si mesmo eram um grito de socorro que eu, ocupado com o meu prazer, não soubera decifrar.

Então me vem a vontade de dizer alguma palavra àquele homem que eu não conheço e me deparo com minhas limitações. Que eu poderia dizer, além daquilo que seus amigos já expunham em comentários breves e inconclusivos? Como falar-lhe apontando um rumo, conforme seu desejo, sem conhecer-lhe a história de vida, suas motivações, seus obstáculos, sua circunstância?

Certamente, como seus amigos, eu lhe pediria para não desistir, para seguir com a medicina e também com o tratamento alternativo que estaria fazendo (suponho tratar-se de uma terapia espiritual), evocaria seus talentos e o lembraria que também é amado. 

Talvez, como poucos, lhe pedisse para não levar diagnósticos médicos tão a sério e até conversasse (com médicos!) sobre a possibilidade de moderar o uso de medicamentos. Talvez dissesse para nem mesmo levar-se tão a sério e a descartar desejos. Talvez o estimulasse a mergulhar mais na poesia e a chutar conceitos, a abraçar a simplicidade até na alimentação e – aí, sim, com esforço e persistência – a arrastar-se para fora do bunker, retomando o contato com a natureza e as pessoas, o gosto pela atividade física e, quem sabe, a fé perdida na infância, o prazer da reverência ao mistério, capaz de nos levar ao êxtase.

Entre as respostas ao seu pedido de socorro, uma me provoca: “Poeta, é preciso arrefecer o ímpeto do militante, não podemos mudar tudo”, disse uma mulher, talvez antiga companheira de lutas sociais. Não vejo isso como um chamado à acomodação, mas ao bom senso. 

O mundo “objetivo” será sempre expressão de nossas construções mentais, tão consistentes quanto a bruma da manhã. Elas dão margem a miragens que desvanecem sob os raios do Sol, que revelam sua natureza. 

O jogo da vida nos impele a moldar formas sobre essa base fluida e isso é divertido, qualquer que seja a nossa cota de vitórias e derrotas, alegrias e frustrações enquanto estamos em campo. A serenidade – a felicidade que emerge da sabedoria de abraçar as flutuações com equanimidade -, no entanto, só se estabelece quando, sob a clareza do Sol, entendemos que tudo passa.

[ Publicado na edição do Novo Jornal de 13/06/17 ]

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Gilberto Cardoso dos Santos
12 Jul 2017 05 51
Caro Jomar, parabns pela oportuna reflexo.
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