Postado em 25 Sep 2017 18 06 Textos Anteriores
De uma perspectiva biológica, não existe nada que
não seja natural. O conceito de antinatural vem da
teologia. Mas o tema transgênero pede cautela.
por JOMAR MORAIS
Um amigo deposita em minha caixa um vídeo sobre “ideologia de gênero”. Trata-se de um tema delicado e polêmico. O sexo é biológico ou é uma construção cultural?O vídeo começa citando a fatalidade do sexo biológico e conquista minha simpatia. Afinal, não há como negar o óbvio. A natureza produz seres - homens e mulheres no caso em foco -, dotados de genitálias diferenciadas que, como prova a saga evolutiva, estão prioritariamente relacionadas à reprodução da espécie.
Segundos depois, no entanto, a narrativa e a ênfase empregada pelo narrador para justificar a submissão da estrutura psicológica à fatalidade biológica, inclusive com a defesa de tratamentos hormonais para supostamente reverter o “desvio”, não deixa margem a dúvidas: a peça tem um forte traço homofóbico e está recheada de preconceitos que enfraquecem os argumentos iniciais.
Fala-se ali no perigo da abordagem do tema ideologia de gênero nas escolas e sugere-se que as questões de sexo fiquem restritas à educação doméstica, como se meninos que hoje tem acesso a todo tipo de temáticas na Internet pudessem ser imunizados ante o perigo imaginário pela simples supressão do assunto e seu debate nas escolas. A partir daí, em nome da biologia e da lei natural, uma série de argumentos culturais reforça preconceitos que desprezam a diversidade e a dignidade humana e o sofrimento daqueles que não se enquadram nas formas rígidas das crenças e do poder. O tiro disparado destina-se também, ou sobretudo, aos homossexuais, que a convenção conservadora vê como praticantes de atos não naturais.
Penso que é preciso acender a luz vermelha quanto à precipitação e aos interesses - inclusive econômicos – que rondam o fenômeno transgênero. O risco de tentar reverter o desenho feito pela natureza com a aplicação de hormônios, sobretudo em crianças e adolescentes, é muito alto. Estamos longe de saber todas as consequências físicas e psicológicas dessa investida na contramão dos genes. Mas essa atitude cautelosa não se confunde com o ranço preconceituoso e cruel de submeter o psicológico ao biológico.
O sofrimento daqueles que convivem com a dissintonia entre perfil psicológico e genitália tem mais a ver com a obrigatoriedade de desempenhar papéis estabelecidos pela cultura do que com as limitações impostas por esse desencontro. A natureza é sempre inclusiva e criativa e costuma facilitar adaptações de estruturas e meios às necessidades dos seres. A boca, por exemplo, teria surgido porque os primeiros organismos precisavam de um órgão para levar nutrientes ao corpo, mas depois viria servir também para falar e beijar.
É preciso ter cuidado com os que invocam a lei natural para impor seus pontos de vista. “Na verdade, nossos conceitos de 'natural' e 'não natural' não são tirados da biologia, mas da teologia”, lembra o historiador Yuval Noah Harari. Teólogos e muitos líderes religiosos arvoram-se em intérpretes das intenções de Deus, mas quem melhor que a própria natureza para expressar o desígnio do Criador?
De uma perspectiva biológica, não existe nada que não seja natural. Um comportamento verdadeiramente não natural, que confronte as leis da natureza, simplesmente não tem como existir. “Nenhuma cultura se deu ao trabalho de proibir que os homens realizassem fotossíntese”, diz Harari. Mas a cultura insiste em reprovar e proibir o que considera “não natural”, não raro a partir de crenças ancestrais.
Ao longo da história isso sempre promoveu opressão e dor às minorias e mesmo a vastas parcelas da população. A hierarquia que durante milhões de anos enquadrou a mulher como submissa ou mesmo como uma propriedade do homem, na maioria das sociedades, era vista como algo natural e aceitável aos olhos de Deus. O estupro, nessa época, só era criminalizado se cometido por outro que não o marido e, ainda assim, rotulado como assalto à propriedade. A escravidão tinha um de seus pilares na crença de que os negros não tinham alma. E ainda hoje não são poucos os que consideram não humanos todos os que pensam e agem diferentemente de um padrão socialmente validado, fato que dá margem a variados tipos de exclusão, injustiça e tortura.
Como antes, diante de iniquidades hoje superadas, as questões atuais de sexo e gênero precisam ser encaradas com o senso de equidade, respeito à condição humana e, sobretudo, com uma boa dose de compaixão.
[ Publicado na edição do Novonotícias de 19/09/17 ]
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