Como minha fé influencia o meu voto
Postado em 04 Oct 2018 02 56 Textos Anteriores



       Ao votarmos conscientemente em um candidato, escolhemos alguém
        que melhor representa nossas verdadeiras crenças e valores éticos


por JOMAR MORAIS


Sou a favor do estado laico. Penso que uma sociedade administrada sob crenças e dogmas de uma religião pode ser qualquer coisa, menos uma democracia plena. E sem democracia é difícil, quase impossível, vivenciarmos a liberdade, a justiça, a magnanimidade e o respeito básico aos direitos do homem.

A história comprova: a hegemonia de uma crença religiosa sempre resulta em obscurantismo, hipocrisia e opressão. O passado e, ainda em algumas regiões do mundo, o presente das religiões estão repletos de fanatismo violento, guerras, inquisidores e torturadores, forcas, espadas e fogueiras onde ardem os corpos de adversários reais ou imaginários sem direito a defesa. 

Em resumo, temos aí, em nome de Deus, uma experiência infernal. 

Crer em Deus ou usar seu nome para dar ares de dignidade às próprias pretensões jamais se constituiu em atestado de bom caráter ou sentimentos nobres. Como lembrou recentemente o monge beneditino Lawrence Freeman, divulgador da meditação cristã, “até o Diabo crê em Deus”...

“Minhas preferências e escolhas justificam e defendem minhas crenças, atestando a autenticidade de minha fé”

Um estado laico não é, necessariamente, um estado ateu. Isso apenas quer dizer que o estado não considera de sua alçada determinar as crenças filosóficas e a prática espiritual dos indivíduos, e sim garantir o direito de cada pessoa fazer escolhas a esse respeito. O estado laico é, na verdade, o grande fiador da liberdade religiosa.

De outro lado, ser defensor da laicidade do estado e da vida civil não significa abrir mão de nossas convicções espirituais ao observar, avaliar e, sobretudo, agir no cotidiano social. Afinal, são nossas crenças (inclusive as religiosas) que nos definem e atribuem significados ao que fazemos e, mais que isso, estabelecem o nosso mundo objetivo ao filtrar nossa percepção da realidade e orientar nossas ações.

Considero saudável que a fé que professamos se expresse também no exercício da cidadania, ressalvado o respeito à diversidade de opiniões e ao diálogo inerentes à prática democrática. O importante é que, ao agirmos assim, sejamos éticos e autênticos. Isto é, que os argumentos de fé não mascarem interesses vis nem se transformem em recursos de manipulação de consciências ou ornamentos para mentiras torpes.

Quanto a mim, embora venha trilhando o caminho espiritual desde a infância com sinceridade e, não raro, fervor, não me sinto inclinado a evocar em todo momento minhas crenças para justificar ou defender minhas preferências e escolhas no dia a dia. Penso que, ao contrário, são minhas preferências e escolhas que justificam e defendem minhas crenças, atestando a autenticidade e a eficácia de minha fé e a ética decorrente dessa adesão.

“O Evangelho é um roteiro ético que pode nos conduzir às melhores práticas na política, na economia e na vida social”

Obviamente, são muitas as minhas contradições, essa dolorosa sinalização da condição humana que, ao mesmo tempo, impele-me a refletir sobre a compaixão e a misericórdia sempre que me deparo com as contradições do outro. Porém, mesmo contido por tais limitações, é aí que tenho insistido no objetivo de alcançar a condição essencial para autorrealização e a paz íntima: o indispensável alinhamento de pensamento, fala e ação.

Escrevo esta nota, a apenas quatro dias da mais dramática das eleições que já tivemos desde o fim da ditadura militar, para reafirmar a mim mesmo esse compromisso e para, enfim, responder a amigos e leitores que me pedem orientações ou me cobram posicionamentos num momento em que poderemos, com o nosso voto, encaminhar o Brasil para a luz da reconciliação e das saídas criativas ou para a treva do obscurantismo autoritário.

Sim, sou a favor do estado laico, mas são as crenças mais profundas do caminhante espiritual que sou que inspiram meus atos como cidadão. Entendo que a vida espiritual é inseparável da vida civil e que é no espaço onde atuamos como familiar, profissional, militante, pensador ou servidor, chefe ou subordinado, amante ou companheiro, eleito ou eleitor que expressamos a nossa fé e a nossa ética verdadeiras.

Quem me questiona sobre o quadro  político-eleitoral quase sempre espera de mim nomes de candidatos e rótulos ideológicos. Mas eu não me sentiria confortável se tentasse induzir ou pressionar alguém a votar nesse ou naquele nome de minha preferência. Em vez disso, permito-me falar sobre meus critérios de escolha com base na vida e nos ensinamentos de meu mestre: Jesus de Nazaré.

Para mim, o Evangelho é um roteiro ético que pode nos conduzir às melhores práticas na política, na economia e na vida social, principalmente em momentos cruciais, em que nossas opções pessoais determinam o futuro da sociedade. E, na impossibilidade de encontrar pessoas e propostas que expressem plenamente o ideal vivido por meu mestre, procuro escolher aqueles que mais se aproximam, por sua história de vida e assertividade, da fé e da ética que me guiam.

“Meu presidente ideal governa para todos, mas não teme afirmar, em atos, sua preferência pelos mais fracos”

Meu presidente ideal é um homem sereno e corajoso, sábio e pacífico, inclusivo e justo, honesto e transparente, tolerante e generoso, hábil para dialogar, competente para tecer sínteses, humilde para servir – alguém que, apesar das limitações do homem comum, evocaria o perfil humano e íntegro de Jesus de Nazaré.

Quero um presidente que governe para todos, mas que não tenha medo de afirmar, em atos, sua preferência pelos mais fracos e sofredores, pelas vítimas do egoísmo, da ganância e da brutalidade opressora. Que ouça Nicodemos, o sábio conservador, e não feche à porta ao fariseu calculista, mas que acolha e cuide com especial zelo da imensa maioria de pobres e excluídos.

Busco um presidente que não despreze os ricos, mas tenha coragem de propor-lhes, como Jesus ao jovem abastado que queria seguí-lo, que repartam o seu supérfluo com quem não tem o necessário e, assim, use o seu poder político para implantar mecanismos que curem a iniquidade social e reduzam a concentração da renda. Que estimule a geração de  riquezas, mas não se esquive de dizer que o apego à riqueza afasta os ricos da bem-aventurança e leva os homens à conflagração.

“Meu presidente é ético, mas jamais moralista, apto a compreender a mensagem compassiva e inclusiva de Jesus” 

Quero um presidente com sabedoria e compaixão, apto a perceber as raízes das dores e da fragilidade humanas e a estender a mão para reerguer os caídos, ao invés de sufocá-los com soberba e crueldade. Um líder capaz de entender o sentido do Sermão da Montanha, do perdão à mulher adúltera e da recomendação cristã de assistência incondicional aos famintos, aos doentes e aos delinquentes. Alguém que não se dobre ante os poderosos e use a espada para impor-se aos mais humildes.

Almejo por um presidente de visão ampla e não mesquinha,  suficiente para entender e imitar Jesus ao priorizar o bem comum da família comunitária (“Quem é meu mãe? Quem são meus irmãos?”). Um governante avesso ao nepotismo, à corrupção em seus aspectos descarados ou sutís e às noções de guetos ideológicos, máfias e grupos “eleitos”.

Quero um presidente ético, mas jamais moralista, sábio o suficiente para compreender a mensagem de Jesus ao sentar-se à mesa dos publicanos e andar na companhia de “pecadores” e, sobretudo, corajoso para enfrentar a hipocrisia farisaica (“vós sois sepulcros caiados!”). Afinal, o moralismo é um arremedo de ética baseado em conceitos irrefletidos, sustentados por preconceitos, que não leva em consideração a particularidade de cada situação e do qual se servem os aproveitadores e, não raro, os canalhas para manipularem pessoas e alcançarem seus interesses abjetos.

“Quero um presidente que respeite as convicções e não use o nome de Deus para enganar os homens de boa fé”

Desejo um presidente que não faça discriminação de gêneros e reconheça a dignidade do ser humano independentemente de sexo ou orientação sexual, de raça ou orientação religiosa. Um líder que entenda e imite, nas circunstâncias de nosso tempo, o gesto de Jesus ao dirigir-se à mulher samaritana – triplamente discriminada por ser mulher, pobre e samaritana – e confiar-lhe a missão de levar o Evangelho à sua comunidade.

Quero um presidente que respeite as convicções dos indivíduos e não use ou se associe a quem usa em vão o nome de Deus para servir-se da ingenuidade dos mais simples e tirar proveitos ilícitos da fé. Alguém que diariamente recorde a veemência do Cristo contra os líderes religiosos de seu tempo que abusavam de orações e preceitos para “explorar as viúvas” e transformar o templo em um local de comércio e “covil de ladrões”.

Meu presidente ideal é um líder que coloca o homem e sua dignidade acima, inclusive, da letra da lei, que deve servir à fraternidade e à justiça. Um chefe de estado e de governo para quem tenham sentido a instrução  de Jesus aos discípulos famintos na estrada, para que recolhessem espigas de milho e as consumissem em pleno sábado, e a sua decisão de curar enfermos dentro da sinagoga no dia prescrito para o descanso e o louvor, por entender que “o sábado foi feito para o homem” e não o contrário.

“Se a ética do Evangelho não se aplica à vida real, então nós, os cristãos, ou somos tolos ou farsantes”

Meu presidente ideal é alguém que, por suas decisões e por sua coerência na virtude do amor, possa nos conduzir à percepção da família que somos como uma nação e da prioridade que devemos conceder ao homem e não aos números e às fórmulas econômicas. Alguém que exorte e contribua para que cada brasileiro se desarme e se transforme em arauto da paz. Um presidente humano, passível de errar, mas perseverante no ideal de tornar o seu país e o mundo em um lugar mais confortável e justo.

Sei que falando assim posso ser visto como ingênuo e sonhador, um louco talvez. A vida e os ensinamentos  de meu mestre vem de muito longe, de um tempo em que ainda não existiam a revolução industrial e a explosão tecnológica, o capitalismo e o socialismo, as fórmulas econômicas e os sofisticados recursos de cooptar consciências de nossos dias.

Mas a verdade é que, naquele tempo, havia, tão intensamente quanto hoje, o egoísmo e a avareza, a hipocrisia e o sofisma que mascaram a vilania dos que chafurdam na contramão do amor e da paz ainda que falando em nome deles. E a tudo isso meu mestre, Jesus de Nazaré, respondeu e protestou com um profundo e revolucionário humanismo.

Como Francisco, como Gandhi, como Sócrates, enfim, como todos os que, em diferentes épocas e contextos, ousaram sonhar e viver a utopia humanista da qual o Evangelho é um dos mais límpidos espelhos, neste momento crucial do Brasil e do mundo humildemente eu digo sim a essa proposta. Reafirmo assim a minha adesão à clareza do argumento simples e incontestável do amor e não escondo minha perplexidade nesses dias tumultuados. 

Se, como cristãos, já não acreditamos no humanismo de Jesus e na viabilidade de sua vivência no dia a dia, que rasguemos então os livros e esvaziemos os templos, pois, nesse caso, somos todos tolos ou farsantes.

                                                                                        [ Escrito em 04/10/18 ]

Tem vídeo novo na TV Sapiens. Vai lá > https://youtube.com/sapiensnatal

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Jomar Morais
24 Dec 2018 03 36
Obrigado, caro Ricardo Alves da Silva pela leitura do texto e pelo incentivo.
Flávia
05 Oct 2018 07 04
Muito agradecida a vc Jomar pela clareza das ideias sobre assunto tão simples em momento tão delicado, tenho impressão q vc transformou em coerentes palavras os meus anseios. Porém, procuro nos perfis de cada um dos candidatos atuais e não consigo vislumbrar todas os atributos q estão no texto. Tudo está muito confuso, talvez pela desconfiança e pelo medo disseminados entre todos. Peço aos q me orientam, q me auxiliem no uso da coerência e do bom senso no momento em q for votar. Mas sei q, mais importante q meu voto, será meu comportamento após o resultado final das eleições: aceitar o q vier, com mansidão e arregaçar as mangas para trabalhar. Obrigada por expressar ideias claras em meio a discussões e dissensões tão violentas.
Ricardo Alves da Silva
04 Oct 2018 10 35
Lindo e inspirador!
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