Postado em 04 Feb 2015 05 17 Textos Anteriores
O trânsito é caótico e sem semáforo,
mas os nepaleses conseguem se
entender e preservar a gentileza
por JOMAR MORAIS
E, de repente, estou sentado à porta da casa de uma deusa. Uma deusa viva. Ou melhor uma Deusa, assim com D maiúsculo, pois a Kumari, no Nepal, é uma deidade espiritual e não uma rainha das passarelas, uma mulher sensual. É uma menina. Adorada, sim, até que venha a primeira menstruação, quando então perde seus poderes e vira uma aborrecente comum.
Espero pela Kumari de Katmandu (cada grande cidade deste pequeno país tem sua deusa), olhar fixo em sua janela, e ela não aparece. Dura é a vida de uma Kumari, palavra que em páli significa “virgem”. É prisioneira em um imenso palácio do século 16, na majestosa Durbar Square, o núcleo da antiga cidade imperial, e quando, enfim, ganha o direito de andar pelas ruas como qualquer adolescente, descobre que ter sido uma deusa foi uma maldição. Os jovens nepaleses discriminam as ex-kumaris. Casar com uma delas, diz a lenda, atrai o azar.
A tradição das kumaris é um dos muitos ornamentos do fantástico patrimônio histórico e cultural do Nepal, um território onde, há 2 600 anos, um príncipe entediado rompeu as algemas reais para interagir com o sofrimento das ruas e, finalmente, encontrar um jeito de superar a aflição humana através da clara visão de suas causas e condições. Lumbini, no sul do país, é a cidade natal de Sidarta Gautama, o Buda, a grande referência dos turistas que aqui chegam, depois do monte Everest.
O Nepal é agrarário e pobre, apesar da riqueza de suas relíquias, várias tombadas pela Unesco. Seus 30 milhões de habitantes convivem com ruas esburacadas, poeira, apagões diários, trânsito caótico, falta de saneamento e salários irrisórios. Mas, a despeito da máfia das drogas, que oferece maconha e haxixe na penumbra do Thamel - o bairro empoeirado de Katmandu que surgiu com os hippies, nos anos 60, e se consolidou com o aporte de mochileiros, trekeiros e alpinistas -, tudo aqui parece exalar tolerância, gentileza e paz.
Estou encantado com a exuberância do patrimônio histórico do Nepal, mas, para ser sincero, acho que a lição mais marcante que podemos extrair desse cenário está no simbolismo das esquinas sem semáforos, sem que o caos de veículos, principalmente motos, e o barulho permanente de buzinas, estresse os nepaleses ou manche o sorriso tímido, mas sincero, com que recebem os forasteiros.
Como um clima amistoso e de cooperação consegue ser mantido quando há tantos fatores adversos?
Por que um país marcado por um “karma” de tantas vicissitudes e desorganização não aparece no mapa do mundo como um foco de violência urbana, depravação, transtornos mentais e suicídios?
Com incentivo da ONU, muitas organizações não governamentais atuam em programas de assistência e promoção humana no Nepal – e isso é bom para os nepaleses. No entanto, melhor seria se tivéssemos a humildade de estabelecer aí uma via de mão dupla, a partir de uma pergunta chave: como o pobre Nepal pode ajudar o rico ocidente a alcançar, no dia a dia, a paz e a harmonia que o dinheiro não pode comprar?
[Publicado na edição do Novo Jornal de 03/02/15 ]
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Para acompanhar os flashes do Mochilão-2015 de JM, no Nepal e na Índia, acesse o perfil Jomar Morais, no Facebook. A reportagem completa será publicada futuramente na seção "Viagem" deste site Planeta Jota
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