Síria
Postado em 04 Dec 2014 11 16 Cultura Popular



Foi numa tarde sem nuvens que Lagoa dos Cavalos conheceu Síria. Sítio de poucas almas, almas de pouca vivência das coisas de um mundo muito mais que moderno, banda larga e portas que se abrem sozinhas para quem se aproximar, os poucos mais de setenta habitantes daquelas paragens não estavam acostumados àquele ar gracioso e imaculado de quem chega para marcar vidas. Síria, com seus passos tímidos pelas estradas claras de Lagoa dos Cavalos, trouxe apenas a roupa do corpo e uma pequena bolsa. Nos primeiros dias de sua estadia os olhares eram desconfiados, mas quando ela se aprochegava com sua voz de riacho tranqüilo, desanuviava a todos, aconchegando-os com seu feitio de açucena, convidando as pessoas a participarem das reuniões diárias. E não demorou muito para que velhos e crianças, mulheres e homens na fina flor da juventude aderissem aos seus convites alegres e se recolhessem pela manhã, tarde ou noite, ao seu casebre improvisado. A curiosidade não demorou a aparecer nas fendas do imaginário da pequena comunidade, pois Síria trazia novidades estranhas àquela gente, um mistério, diziam, que envolvia a capacidade de enxergar a realidade de uma forma diferente.

Ao saber dos propósitos de Síria, as pessoas sentiram medo. Um sentimento de incapacidade para compreender aquelas coisas novas que ela fazia palpitar nos olhos de todos. Mas a curiosidade vencia todas essas barreiras e levava cada vez mais pessoas a adentrarem o recinto simples e misterioso, onde Síria atendia a todos com uma simpatia sinceramente materna e límpida. Alguns sentavam nas cadeiras de plástico que havia, outros se acomodavam no chão, ansiosos para começar a entender o que Síria queria.

Embaixo dos cajueiros, apanhando e separando rapidamente os cajus das castanhas, Seu Nonô ouvia com uma pulga atrás da orelha as histórias que o povo contava sobre Síria e seus mistérios. Ele sempre viveu naquelas terras alheias, sobrevivendo de pequenos e rudes trabalhos. Do alto dos seus oitenta invernos de vida, achava que conhecia de tudo, apesar de nunca ter ido muito além da Vila onde nasceu. Poucos meses depois seu Nonô era mais uma das pessoas que começaram a sair do pequeno povoado em busca de coisas que antes não achavam necessárias às suas vidas, mas que agora pareciam ser um pedaço de sua essência.

Seu Antônio Birosca resolveu juntar os treze filhos no paiol vazio onde, em tempos de inverno, guardava as castanhas de caju para vender feira da cidade. Disse a todos que estava decidido a não mais vender o produto bruto do seu trabalho pois iria montar, com o apoio de outros moradores, uma pequena fábrica de doce e suco de caju. Sairia à cidade para vender essas coisas e não mais apenas o caju limpo e seco, que conseguia vender a saca por pouco dinheiro. Tinha aprendido a contar e viu que cada saca de caju poderia fazer dezenas de latas de doce de caju, obtendo muito mais dinheiro. Seu Antônio Birosca não sentia que iria enricar, não. Apenas queria comprar redes novas para todos, uma geladeira e um fogão a gás, deixar o fogo a lenha apenas para fazer canjica e assanhar milho no São João. Sua esposa, Dona Quinina, foi tirar os documentos na cidade, pois não tinha nem certidão de nascimento, apenas de batismo. Era assim que se fazia há noventa anos, ela pensava. Mas agora a situação era outra. Também não iria mais precisar de ajuda pra tirar dinheiro no caixa eletrônico lá no banco da vila.

O tempo foi passando e Síria sentiu, numa determinada manhã de outubro, que o seu trabalho estava terminado e tinha gerado frutos. Essa menina saída há poucos meses da adolescência fazia florir nas pessoas um desejo novo pela vida, um brilho diferente no olhar...

Era uma tarde quente e abafada de novembro. O vento suave rodopiando lentamente logo se transformou numa grande ventania de inverno, trazendo chuva grossa, os pingos ressoando por sobre o telhado antigo das casas, a água nova e doce esborrotando os potes de barro que ficavam embaixo das bicas e a natureza com suas lágrimas intensas enchendo as narinas do povo com seu cheiro de amanhã e atemporal felicidade. Foi nesse rasgo de momento que Seu Nonô puxou um tamborete e se sentou à mesa de pedra que dava suporte ao fogão a lenha e rabiscou algumas palavras tímidas sobre o papel de enrolar pão. Eram as primeiras palavras escritas de próprio punho em toda a sua vida, e as escrevia com a felicidade e a emoção de quem abre as asas após um longo e profundo sono em ninho escuro. Dizia incontido e emocionado, deitando a mão trêmula sobre o papel a ressoar letras disformes e acanhadas, dizia que Joaninha, sua esposa, voltasse logo de sua visita às irmãs na cidade, pois teriam muito trabalho a fazer, melancias e muitas sacas de feijão verde não demorariam a colorir os dias de um jeito inebriante e belo.

Quando a chuva cessou, os barreiros todos já estavam sangrando, a passarada saudando o novo dia que raiava eternamente lírico. Mas Síria já estava longe, levando a outras paragens a primeira leitura de um mundo novo que se abria aos olhos de quem quisesse ver.

Wescley J. Gama

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