Conto - O Tempo como Fator
Postado em 18 Aug 2016 10 45 Cultura Popular



Paulinho e Estevão nasceram na mesma cidade, em um bairro de classe média baixa, na mesma rua de barro nu. Quando crianças, gostavam de brincar de bila juntos nas ruas do bairro pobre que dormia inquieto à beira azul do oceano atlântico. Como a escola era uma verdadeira tortura, eles sempre gazeavam as aulas para poder sair por aí, fazendo malabarismos no trânsito caótico para conseguir algum dinheiro e comprar dindin de côco queimado, depois jogar Playstation a tarde toda e ir para casa. Às vezes podiam dormir sem apanhar dos seus pais que bebiam sempre no mesmo bar próximo às suas casas. Pela manhã tomavam um cafezinho com pão, quando tinha, e depois se preparavam para a mesma rotina de sempre: ir para a escola, passar dez minutos olhando a cara enfarenta da professora, que vinha com umas coisas chatas para os alunos escreverem. Depois ganhavam o mundo.

Naquele dia houve um fato diferente na rotina daqueles dois pré-adolescentes: Beto aparecera com uma novidade para os amigos da rua: era coisa de gente grande, o caba tinha que ser de responsa para poder usar aqueles cigarros de maconha. Paulinho se adiantou para ver a novidade de que tanto já ouvira falar, mas foi Estevão quem segurou o primeiro cigarro na mão e, levando-o à boca, deu uma tragada sôfrega e prolongada, a primeira da sua vida, e achou que estava flutuando, começou a achar tudo engraçado, a cabeça de Paulinho parecia uma pipa pronta para subir pelo céu azul daquela tarde especial, pensava, agora tinha um alívio para o tédio da vida, agora tinha uma coisa que verdadeiramente lhe trazia uma resposta rápida para a tristeza que tomava conta do seu pequeno coração de menino delinquente. E foi nessa pisadinha que Paulinho e Estevão começaram a usar e vender drogas. Primeiro, maconha, depois crack e cocaína. “A vida né fácil não, mano, tem que ganhar o pão do dia né?” Nessas alturas os dois já haviam descoberto que as aventuras do sexo também lhes trariam alguma felicidade, mesmo que passageira, assim como os cigarros e o pó traziam.

Estevão se destacou na produção e venda de droga no seu bairro. A essa altura já era o chefe da sua família com apenas 13 anos. O pai fora assassinado numa briga fútil de bar. A mãe jazia demente num manicômio. Sempre trazia comida para os dois irmãos menores, mas não queria que eles também fossem para a escola e passassem pelo tédio costumeiro que ele já conhecia bem. Então os deixava largados na rua, onde eles brincavam com outras crianças, sem expectativas ou qualquer esperança de conhecer outra realidade. Aliás, eles não sabiam nem o que significava a palavra esperança e seus desdobramentos.
Paulinho, diferente de Estevão, sentia que havia algo errado. Sentia um aperto no peito, lembrava da mãe morta anos antes: câncer no seio. Mas não tinha tempo para pensar muito nessas coisas, pois agora trabalhava para o maior traficante do bairro e tinha que produzir mais de cem papelotes de maconha por dia. Chegou um momento em que ele conheceu uma menina do bairro e pensou em casar e arrumar um trabalho decente, como empacotador de supermercado ou atendente de loja de eletrodomésticos... Mas já era tarde para sair, pois se Paulinho atrasasse para chegar na boca de fumo para começar a fazer sua parte na pequena fábrica de drogas, logo seu celular tocava. Todos que trabalhavam no tráfico se observavam e, ao mínimo deslize, o desertor pagava com a pena de morte sumária e fria.
Quando Paulinho e Estevão contavam 20 anos, coincidentemente no dia em que faziam aniversário, a polícia invadiu o bairro violentamente, numa operação de combate ao tráfico de drogas. Paulinho estava numa esquina, vendendo alguns papelotes de maconha e não teve tempo para reagir, quando seu corpo foi arremessado longe pela força bruta de uma metralhadora de guerra... Paulinho não teve o direito nem de ser enterrado... foi queimado ali mesmo, pelo incêndio que provocou a explosão do camburão da policia, alvejado por uma bomba de grande impacto, jogada lá de cima, do quarto andar de um prédio alugado para o tráfico.

"Vinte anos. Nunca esqueci desse fato. Tínhamos vinte anos... Eu e Paulinho nascemos na mesma data. Fiquei chocado com sua morte, fiquei uma semana sem trabalhar nas bocas, ocupadas pela polícia. Fiquei uma semana sem comer, pois poderia ter sido eu. Ainda planejei uma vingança e acertei um dos samancos na cara, mas não sei se ele morreu. Depois desse episódio, não pude nem chorar a perda do amigo, as lágrimas simplesmente não vinham, estava rígido e seco, não tinha o que chorar, já estava calejado de tanta dor, de tanta raiva!

Acho que uma pequena mudança se deu quando fiz 23 anos e comecei a ter vontade de nadar nas águas azuis e profundas da praia à tardinha. Nadava tanto que ficava cansado e adormecia na areia. Quando acordava, já noite alta, ia pra casa tomar um café com meus irmãos. Eles estavam participando de uns projetos sociais lá no bairro. Um dia, quando fiquei sabendo que lá tinha natação e basquete aí eu me interessei. No começo todos me olhavam com medo, pois sabiam que eu era envolvido com drogas e às vezes chegava lá drogado. Mas aos poucos aquilo foi consumindo meu tempo... comecei a treinar bastante na piscina, às vezes pulava o muro de madrugada para treinar, numa ânsia louca por aquele exercício que me relaxava  e fazia com que eu perdesse, paulatinamente, o ódio do mundo....
Um dia, já com trinta anos, consegui me livrar definitivamente das drogas, pois elas me consumiam por dentro, me davam um prazer instantâneo e logo vinha uma tristeza funda no peito, como se tivessem me envolvido numa escuridão irreversível... Me livrei delas e me tornei instrutor de basquete e natação lá no projeto do bairro. Foi lá que conheci Elisa... e vocês já podem imaginar o resto da história."

Estevão não sabia, mas tinha se tornado um homem de bem. Como fazia as coisas de coração, nem notava o quanto estava contribuindo para que a pequena comunidade do seu bairro se transformasse um pouco... durante os anos que se seguiram Estevão se sentia cada vez mais instigado a ajudar os outros a encontrar o seu próprio caminho... Conseguiu com a ajuda de amigos, realizar atividades educativas em outras comunidades, criando uma rede de ajuda mútua... só ficava triste quando lembrava de Paulinho, morto há sessenta anos. Pensou que talvez o tempo tenha sido o único fator a fazer com que Paulinho não tenha mudado de vida, se tornado alguém preocupado com as pessoas ao seu redor, buscando a felicidade na felicidade dos outros também. Será que algumas pessoas são apenas bonecos que Deus criou para sofrerem a vida toda e depois deixarem de existir ou padecerem num inferno de imagens medievais? Será que existe justiça divina? Onde ela estava quando salvou um e deixou o outro se estatelar no chão crivado de balas? Não... Estevão sentia dentro do seu âmago que havia algo acima de seus conhecimentos, um mundo maior, uma realidade tão suave e descomunal que preencheria o seu ser com uma esperança plena e reconfortante. Paulinho teria outra chance? Onde estaria?

Naquela noite de estrelas vivas em que Estevão completava oitenta anos de vida, uma brisa tranquilizante invadiu o ambiente lotado por centenas de amigos e admiradores, que vinham prestar-lhe uma última homenagem: Estevão ganhara o respeito de toda a cidade, ficara conhecido como o trombadinha que tinha se tornado um grande homem, mudado a vida de tantos outros e preenchido o vazio existencial que tomava conta de muitas pessoas que viviam nas mesmas condições em que ele vivera, aprendendo lições que enobreciam suas almas.
O adeus a Estevão foi tranqüilo, com lágrimas silenciosas. Na manhã seguinte, um perfume de jasmim embalsamava de forma tênue as ruas que davam acesso ao jardim do cemitério e todos voltaram às suas casas com um brilho diferente no olhar. Uma estrela nova brilharia no céu diáfano daquela cidade imersa na experiência imensa da vida.

Wescley J. Gama




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Jorge Braúna
30 Sep 2016 13 23
Lindo texto, amigo. Viajei...
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