Pequena resenha do livro Rastejo, de Humberto Hermenegildo
Postado em 26 Mar 2018 12 43 Cultura Popular

É de se festejar quando vemos/lemos obras que se debruçam como uma chuva grossa
primeira sobre nossos costumes e nossa forma sertânica e peculiaríssima
de viver. Com competência, com golpes certeiros -  dramáticos e líricos, com uma vida inteira de leitura de mundo e mais ainda, leituras e críticas literárias mil e a mancheia, o querido
professor Humberto Hermenegildo traz à superfície da cultura potiguar
interiorana e “capitalesca”, através de seu livro "Rastejo", um manancial profundo e até agora adormecido de vivências, onde se misturam a construção de um sentimento de mundo aliado a experiências culturais que são a própria essência da construção de nossa identidade com implicações mais profundas, complexas e intensas do que pensamos/achamos.

Assim como o crítico Harold Bloom sugere inicialmente a leitura dobrada de cabo a rabo do romance 'O leilão do lote 49' , lançado em 1965 por  Thomas Pynchon, ao terminar de ler "Rastejo" senti a mesma sensação, tanto por vontade de degustar novamente a forma lírica e densa com que o autor descreve situações, lugares, brincadeiras e costumes tanto como pelos conflitos emocionais interiores e familiares entremeados à história de luta - a nós tão comum -  pela sobrevivência num Nordeste explorado e oprimido nas décadas de 70 e 80 do século XX.


Seguem dois trechos da bela obra:

  

“Na sala de jantar, reinava absoluta, no aconchego das refeições diárias,
uma mesa centenária que a minha avó Joana herdara para servir a Seu Dono
e aos agregados mais os trabalhadores.  (...) depois da cozinha
chegava-se à sala de feitura dos queijos – engordurada, rústica e
sóbria. A espaço tão precioso, os meninos tinham acesso apenas na hora
da raspagem do tacho em cujo fundo se depositavam os restos do queijo
cozido no ponto, petisco saboreado em dourada e gordurosa farofa. Cruzei
muitas vezes o velho bangalô, de porta a porta, feliz por compartilhar
com o avô a reinação que estimulava uma vocação de rastejo – eu entrava
no matinho circundante e voltava correndo sobre o cavalo de pau, a
gritar para o velho que me adorava: “Segura essa onça aí que eu vou
pegar outra!” e logo retornava com mais um felino que iria lamber as
mãos do meu herói de cabelos brancos. (...) Na cozinha, o meu pai
incentivava com grito forte, sob nossos aplausos, a proeza de fazer
subir o pãozinho de goma até quase o teto rebaixado e depois apará-lo
com a tacha quente que voltaria ao fogo para o fim do cozimento: “Com
vocês, a mulher que vira tapioca!” tão pura,tão ui-ui-ui, cheia de medos
de trovão, marimbondos, ciganos e vaca braba.”

 

“De dentro da sala, os velhos vultos pareciam supervisionar pela abertura
das janelas as brincadeiras que o Homem do Braz permitia a Madrinjoana,
assim chamada pelos agregados daquele mundo. Ele parava, em tardes de
domingos, a labuta do sítio e trazia os moradores para o entorno do João
Galamarte que mandou instalar sob a copa da caibreira do terreiro na
frente do alpendre. Chegava, com os gritos do brinquedo, o bafo de um
passado imaginado e capaz de alargar margens de narrativas sobradas da
grande instalação das raças no sertão. O eixo ensebado da gangorra tosca
do velho tropeiro rodava e os praticantes exibiam nos volteios a noção
de pureza ameaçada. Sem querer, as raças se enlaçavam simbolicamente no
encontro das suas sombras no chão, ao entardecer, e hibridizavam no ar a
poeira que os seus pés levantavam cavando a terra batida com a força
dos impulsos dados para fazer rodar a geringonça. Dava a impressão de
que as mãos se estendiam para um toque, como se fosse absolutamente
fraterna a farra no terreiro. Até minha avó, tão branca e até dita marrana, gritava na empolgação
gangorrenta reafirmando o conto da sua bisavó: Aqui quem roda é a índia
velha pega a dente de cachorro e casco de cavalo pela bandeira de Jorge
Velho! Quando o morador apelidado de Zé Preto subia na gangorra, alguém,
subitamente, aloprava a língua carregada de preconceitos: Segura aí,
negro velho da gota serena!”



Wescley J. Gama

              


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GYNCUNPAP
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