Café com pão
Postado em 04 Sep 2014 14 41 Cultura Popular



Acordou, lembrando que estava só na casa. Eulália partira há uns dias. Não resistira à cirurgia. Quarenta e três anos de casamento e agora o vazio derramado pelos compartimentos insípidos. Não sentiu vontade de levantar e encarar o tempo.

O sentido de tudo se esvaíra por seus poros, pelas frestas da luz solar que insistia em vazar para o quarto. Contudo, ficar deitado desperto provocou-lhe um certo mal-estar, aliado ao hábito de tomar o café fresco e muito quente logo cedinho. Muito lentamente levantou-se, lavou o rosto e puxou o ferrolho da porta, fazendo a luz invadir a sala em meio ao ranger da porta velha.

Sem vontade, quase sem existir, ele mergulhou no sol da manhã e encontrou o dia com as pessoas dentro. Andou como quem não quisesse chegar ao destino. A mercearia era bem ali, e Zé de Rosa estaria pronto para lhe vender os pãezinhos de sempre. Menos pães, por favor, seu Zé. Sou só agora. Menos café no fogo. Menos, menos.

Aquela pequenina caminhada de alguns metros lhe dera uma frágil disposição para o café. Voltou para casa, colocou a água no fogo, partiu um pão francês e passou margarina. A água ferveu e o cheiro do café se aconchegou pela casa, tirando do ambiente um pouco do peso surdo e sufocante da ausência de Eulália. Então ele abriu a pequena janela que dava para o jardim, sentou-se à mesa e despejou o café na xícara. Café com pão. O gosto tava bom como sempre.

Contrário às suas expectativas, com emoção, com serenidade e uma sutil e transparente surpresa percebeu que sentia paz naquele minuto exato. Talvez o primeiro momento de trégua desde a viagem da companheira. Íntima sensação de pertencimento. O café, a janela, as plantas e a luz da manhã ainda estavam ali.

Wescley J. Gama

Para abrir o formulario de comentarios, clique sobre o titulo do texto ou sobre o link de um comentario:
Rejane Medeiros
01 Oct 2014 06 59
Belíssimo e sublime conto, caro Wesley. Hoje, neste dia do idoso, façamos uma reflexão a partir do mesmo. Será que estamos preparados, educados para envelhecer em nosso país? Os idosos parecem ser transparentes. As políticas não funcionam a contento.Coisas simples, como o cheiro do café inebriante, lembranças da companheira Eulália, que tanto abrilhantava esse doce cotidiano...Sensibilidade tem nome neste blog: Wesley. Parabéns,caríssimo.
Dulcimar di Oliveira
26 Sep 2014 16 42
Como admiradora explícita desse homem criativo, sensível e muito inteligente, só tenho que me alegrar pela subjetividade esperançosa do seu conto.
Abraço com carinho, Dulcimar 😘
Jomar Morais
04 Sep 2014 18 02
Opa! o Blog do Wescley ficando ainda mais agradável. Que, além das crônicas que nos fazem pensar, venham mais contos. Abraço!
Deixe um comentario
Seu nome
Comments