Meu amigo se foi numa lambreta
Postado em 10 Jan 2018 20 31 Textos Anteriores












Para Armando Tomaz,  
com   amor 
e carinho.  


por JOMAR MORAIS


A Internet trouxe-me a notícia: Armando Tomaz já não está entre nós. Depois de uma longa e dolorosa enfermidade, ele morreu na tarde deste sábado, 6 de janeiro. Como os magos que seguiram a estrela de Belém, finalmente alcançou sua meta. Em um dia simbólico, Armando encontrou Jesus na manjedoura da morte, presenteou-o com a sua própria existência repleta de feitos pelo bem de muitos e saiu de cena, deixando-nos na saudade suave das amizades plenas.

Foi um desfecho esperado por familiares que dele cuidaram com dedicação e também pelos amigos que puderam visitá-lo nessa fase terminal. Armando descansou. Mas quem pode segurar a emoção quando as memórias emergem das profundezas da alma e nos fazem reviver cenas tecidas com afeto e zelo?

Vi Armando Tomaz pela última vez na noite de 25 de dezembro, no Hospital da Base Aérea. Então, com a autoridade que o amor nos concede, impus minhas mãos sobre sua fronte e saudei-o do fundo de meu coração com a velha bênção do Livro de Números: "Que o Senhor te abençoe e te guarde. Que a face do Senhor brilhe de alegria por tua causa. Que ele tenha misericórdia de ti. Que o Senhor te dê a paz".

Que melhor presente eu teria para ofertar ao meu melhor amigo, em agonia de morte, do que a bênção ancestral que Francisco de Assis repetiu para  seu amigo e benfeitor inseparável, frei Leão, dias antes de morrer na cabana da Porciúncula?  

Não fora Armando quem primeiro me conectou, nesta vida, ao Pai Francisco, através de sua amizade e devoção a Clara de Assis? Não fora  com ele, Armando, que criamos, em minha adolescência,  a Caravana Irmã Clara, um singelo trabalho de amor que nos levava, junto com outros jovens espíritas, a subir os morros da cidade para doar alimentos a famílias pobres nas manhãs de domingo? Não era ele que, curioso, queria saber se sua guia espiritual, de nome Clara, teria sido pelo menos coadjuvante entre os jovens que sacudiram a Idade Média e o mundo cristão caminhando junto ao “pazzo” de Assis?

Conversamos sobre Francisco e Clara em setembro passado, ele sobre uma cama da UTI do Hospital do Exército. Eu falando, ele escutando, respondendo só com o brilho dos olhos e, a partir daí, a todas as minhas rememorações naquela conversa reservada de filho e pai. Desde então, voltei a ouvir o ronco da lambreta que, no final dos anos 60, ajudou a consolidar nossa amizade – eu um menino de 13 anos, ele um suboficial da Aeronáutica, de 37 anos, meu instrutor e instrutor de tantos jovens na Mocidade Espírita Eurípedes Barsanulfo. 

Conheci-o em um momento marcante de minha vida, quando, pelas mãos de adultos audaciosos (os conservadores diriam “loucos”), tive acesso simultâneo ao jornalismo (graças a Tarcísio Monte, secretário de Redação de “A Ordem”) e ao Espiritismo (graças a Armando Tomaz e José Augusto da Costa), enquanto os hormônios revolucionavam meu corpo e minhas emoções. Em pouco tempo, as longas conversas noturnas na calçada da SECA ou próximo à minha casa, onde eu descia da garupa da velha lambreta, e, sobretudo, em sua casa, tornaram-me um membro de sua família, com a concordância de dona Luci, minha interlocutora em tantos papos, e a tolerância de seus filhos menores Esmeraldo e Cristiano. 

Daí para o segundo estágio, em que nos tornamos amigos e confidentes recíprocos, durou pouco. E até hoje eu me pergunto o que levaria um homem adulto a confiar a um moleque, em horas dramáticas, seus problemas e seu sofrimento e ainda ficar à espera de conselhos. Seria a mesma força que levou aquele moleque, tímido e arredio, a ocultar de seus pares dores e dúvidas, preferindo confidenciá-las a um adulto já tão distanciado das instabilidades da adolescência? Neste caso, provavelmente, a força era a compaixão e a ternura de Armando Tomaz em seu trato com os jovens, o que lhe permitia orientá-los sob rigídos conceitos éticos da Doutrina Espírita e da caserna sem se tornar uma voz ameaçadora e sufocante.

A nossa foi uma longa e saudável parceria, adornada por interpretações espirituais para as quais concorreram a vidência de Odorico, irmão de Armando, ao referir-se a nossas vidas passadas e ao exílio conjunto, algo talvez explicado pelo insight que um dia narrei em meu site ( 
https://planetajota.jor.br/fuinegao.php ). Parceria de afeto e de trabalho, muito trabalho, sempre  marcado pela ousadia inovadora de Armando Tomaz. 

É claro que tivemos desencontros. Um dia o “careca”, como o Aderson Lourenço de Araújo, outro de seus filhos queridos, o chamava, disse-me que eu era autoritário e ditador na defesa de meus pontos de vista. Afastamo-nos e tive a bênção de conhecer de mais perto Dagmar Melo, outro adulto ousado que me confiou missões importantes apesar de minha pouca idade. Mas jamais eu e Armando perderíamos o amor e o respeito recíprocos. Logo estávamos juntos de novo, conversando, inovando... e confidenciando. Foi assim que o “velho” acabou acelerando o meu casamento, ele que sempre teve um conceito conservador sobre casamento e família.

Mas quis a vida nos separar. Aos 22 anos de idade segui para São Paulo e a distância me permitiu desbravar outros caminhos, distintos daqueles em que caminhamos lado a lado durante tanto tempo. Cresci profissionalmente, acrescentei informações e vivências à minha bagagem, nossas visões em relação a muitos aspectos da vida se diferenciaram, mas isso nunca estragou nossa amizade e, sobretudo, o respeito mútuo. Nossos debates, quando nos encontrávamos em Sampa ou em Natal, nunca esfriaram os abraços nem a necessidade de pedirmos conselhos um ao outro. E a verdade é que, nos momentos escuros dessa etapa, quase sempre foram as palavras e as lágrimas do Armando dos anos 60 e 70 que emergiram do fundo de minha alma, inspirando-me decisões.

Acho que, em relação a nós dois, não vimos o tempo passar. Até a noite de 25 de dezembro, sempre que estive diante de Armando eu me senti o menino de 13 anos em frente ao amigo e instrutor, de 37 anos, tão maduro para os meus olhos. Penso que ele, como um pai em relação ao filho, também jamais deixou de ver-me como um menino, apesar do respeito formal que passou a ter por meus argumentos elaborados. Tocou-me o coração vê-lo tão preocupado comigo, ao encontrar-me doente em uma de suas idas a São Paulo. Insistiu em conduzir-me a um hospital.

Acho que a vida lhe foi plena e intensa enquanto pôde conviver com jovens, pois disso me deram prova suas palavras ao conversarmos em Sampa. Estava sempre entusiasmado com os moços que o assessoravam no comando da Federação Espírita do RN na década de 80. Referia-se com otimismo a Hércules, que ele pretendia tornar seu sucessor, elogiava a Adriano e fazia paralelos comigo na década de 60, citava outros nomes. Era um homem jovial, de ação e sentimento, não necessariamente nessa ordem.

Quando voltei a residir em Natal, décadas mais tarde, ele parecia perplexo com meus estudos e minhas práticas espirituais mais amplos. Um dia me provocou: “Você vai fundar uma nova religião, não é?”. Aí percebi que, separados pela distância e pelo tempo, tinhamos entrado em descompasso e se tornara difícil nos entendermos sobre algumas coisas, pois nos faltava um lastro comum de conhecimentos e crenças para isso. Nunca insisti para esclarecer-lhe nada e, assim, restabelecemos nosso contato sobre o suporte do passado que realmente contava: a amizade, o carinho e o respeito. Um dia ele me deu uma prova de que me aceitava como sou. Revelou que uma pessoa a quem ambos amamos, descontente com minhas ideias e minhas ações, o procurou para criticar-me. “Sabe o que aconteceu?”, disse. “Entrou por um ouvido e saiu pelo outro”. E abraçou-me calorosamente.

Sim, eu poderia escrever de outro jeito. Um homem de valor, um filho Deus que prestou relevantes serviços às pessoas como cristão e espírita, um homem de bem que honrou sua cidadania, um bom profissional acaba de morrer e eu poderia nomear-lhe as obras, os títulos, as honras sociais em uma homenagem formal que, certamente, surgirá em algum momento e lugar.

A mim, no entanto, importa em primeiro lugar realçar o coração, a alma, a essência do ser por trás de todos as formalidades e aparências. Tive o privilégio de conhecer e conviver com o amor e a ternura de um homem de bem, em uma amizade sincera e desinteressada que me fortaleceu e encaminhou-me para outras travessias. Foi uma bênção em minha vida.

Sem sua presença e seus ensinamentos básicos e simples, caro Armando, talvez eu tivesse me perdido no turbilhão das pulsões, talvez minha fé tivesse esmorecido, talvez eu tivesse perdido a coragem de ousar. Sem presenciar a sua dor, no pôr-do-sol do Potengi, talvez eu não tivesse desenvolvido a habilidade de administrar minhas próprias dores. Sem suas virtudes e defeitos talvez eu tivesse me frustrado ante minhas virtudes e defeitos e desistido da caminhada. Gratidão imensa é o que resta.

Chegou seu tempo, meu velho. Vá em paz. Acelere a lambreta. Eu estarei sempre na garupa, repetindo ao seu ouvido: “O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor te dê a paz”. 

[ Escrito na madrugada de 07/01/18 ]

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