Parte I: Delhi e Rishikesh 02/01/06 – Meu primeiro dia na Índia: um choque!
A Índia é impactante, é chocante, é incrivel. Há alguns anos pratico meditação e me interesso por tudo o que diz respeito às tradições sapienciais deste país. Se não bastasse, antes de embarcar li mais de 3 000 páginas de guias sobre a Índia (The Rough Guide to India e o Lonely Planet South India, além de livros, documentos extraídos da Internet etc). Ainda assim, meu primeiro dia em Delhi, onde desembarquei às 4h30 da manhã, após uma parada na Alemanha, foi desconcertante. E olha que eu já sentira antes o impacto de uma sociedade bem diferente da nossa, durante meu périplo pelo Marrocos, em 2004.
Desembarquei exausto, após mais de 18 horas de vôo. No aeroporto, como sempre, o passaporte brasileiro abre as portas da simpatia. O funcionário da imigração recebeu-me com um sorriso, trocou palavras comigo sobre carnaval e futebol, que ele conhece pela televisão. Mas no hall de desembarque não estava o motorista prometido pelo Hotel Ajanta para o transfer. Apenas uma placa com o nome do hotel e o de um passageiro que não era eu. Logo alguns motoristas de taxi me cercam, tentando convencer-me a seguir com eles para o hotel. Preferi esperar. Tentei o telefone fixo, mas uma voz feminina, falando talvez em Hindi, dizia coisas que eu não compreendia e a conexão não se completava. Empurrando o carrinho de um lado para o outro, observei o cenário modesto do salão, os quiosques rústicos - inclusive o do câmbio oficial - e o cheiro de incenso no ar. Só 40 minutos depois um jovem me procura, dizendo-se o responsável pelo meu traslado. Mas ele não tinha o meu nome completo nem o meu código de reserva e eu me recusei a seguir com ele. Só após sua ligação para o hotel - quando então um funcionario atestou a autenticidade do motorista e confirmou meu nome e código - decidi seguir na pequena van. Babo, o jovem motorista de 22 anos, imigrante do Nepal, é simpático, fez perguntas sobre minha família, sobre o Brasil. Tranquilizou-me quando, ainda na escuridão da noite, parou o carro na avenida de acesso ao aeroporto Indira Gandhi para um senhor que lhe perguntou algo, olhando para mim: "É um turista", respondeu em inglês. O homem, segundo Babo, era um policial.
Vinte minutos após trafegarmos por ruas mal iluminadas, já parcialmente tomadas por riquixás (triciclos adaptados com lambretas e bicicletas) e pessoas humildes rumo ao trabalho, chegamos ao Hotel Ajanta. Fica numa rua estreita e tomada por carros antigos e riquixás, no bairro Paharganj, a 10 minutos do Connaught Place, a área comercial de Nova Delhi. Ainda na portaria, enfrentei um blecaute. Depois, no apartamento, outra vez a falta de luz por alguns instantes. Apesar do barulho de buzinas e gritos no começo do dia, adormeci, levantando quatro horas depois, cansado, apenas para ambientar-me à cidade ainda durante o dia. Sem café da manhã (comera muito bem no luxuoso Jumbo da Air India que me trouxe de Frankfurt), driblei os agentes da portaria e da agência de turismo do hotel, que ofereciam pacotes, taxi pré-pagos, riquixás etc e sai a pé, caminhando pela avenida da New Delhi Railway Station (a estação de trem), em direção ao Counnaught Place, atordoado pela multidão nas rua enlameadas e cheia de ônibus antigos, automóveis, riquixas a pedal e motorizados, carros de boi e vacas solitárias - tudo transitando e cruzando sem a colaboração de nenhum semáforo ou guarda de trânsito.
“Você está com algum problema?” Um pandemônio para quem estava chegando. A cada esquina era cercado pelos touts (os cambistas zangões) querendo me levar para esta ou aquela agência de turismo ou lojinha. A um deles, que me seguia insistentemente, disse que eu queria ficar sozinho naquela tarde. Ele respondeu: "Por que? Você está com algum problema? " . Apressei o passo e me refugiei na Pizza Hut para comer algo. Muito cansaço, mas enfrentei a fila para entrar na lanchonete (tempo médio de espera de 25 minutos). Queria também fugir da pimenta, que já experimentara nos pratos generosos da Air India (até o sucrilho matinal é apimentado), e pedi uma Green Salad (doce), mas a pimenta veio a parte. Na saída badalei o sino da sorte, colocado junto a porta, com a inscricao? "Have a good time - Ring the bell". Sinos assim são usados na entrada dos templos.
Na volta ao hotel, já à noite e muito cansado, tomei o caminho errado e fui convencido por um rapaz gentil, a tomar um riquixá para voltar ao hotel. Foi uma experiência incrivel. Dentro da pequena carruagem (veja acima, à direita, foto de riquixás num trânsito onde há até elefante), movida por uma lambreta, sentimo-nos frágeis no tráfego confuso. Parece que vai ocorrer um acidente a cada segundo, há sempre um veiculo vindo em sua direção e o motorista freia bruscamente ou faz uma manobra para desviar de outros riquixás, automóveis e pessoas, às vezes a apenas 5 ou 10 centimetros de distância. Tudo isso na quase escuridão de avenidas mal iluminadas, dirigindo ao estilo inglês (com a mão invertida), sem semáforo ou guarda (estes são poucos e restritos a avenidas principais e ao acesso a grandes instituições e monumentos).
No hotel, Internet de graca e sem limite, telefonema interurbano barato para o Brasil e com excelente qualidade de som. Tecnologia e desalinho na rua enlameada e barulhenta. Converso com o agente de turismo do hotel sobre Rishikesh. Ele tenta vender-me carro com motorista e hospedagem em resort, mas decido ir mesmo para Rishikesh de trem, sozinho, e pousar num ashram (centro de estudo religioso), como programado. Janto no restaurante do hotel. O litro de água mineral é indispensável na refeição, principalmente para os estrangeiros. Ufa! Que dia. Estou perplexo. Receio decepcionar-me com a Índia.
03/0/06 – Hare Hanumam! Sou de casa.
Acordo ainda com algum cansaço, mas disposto a desocobrir Delhi. Meu humor está melhor. Me comunico melhor com os funcionários do hotel. Começo a perceber como as coisas funcionam. Excelente café da manhã no restaurante do hotel. Depois, sigo direto para a estação de trem, numa rua próxima e faço minhas primeiras fotos com a máquina digital de meu filho Luis. Apanho na regulagem. Vou perdendo o receio de me misturar na multidão e transitar no meio dos veículos. Fotografo gente, com paciência, sem temer a recusa.
Já estou me tornando um de casa. Mais solto, quase não sou abordado por touts (só dois ofereceram seus serviços). Turista perplexo parece que leva nome na testa, por isso eles avançam. Na estação, subo para o International Tourist Bureau, setor de atendimento a estrangeiros. Sou bem recebido pela atendente, uma senhora que me faz preencher uma ficha, fornece informações sobre trens. Em seguida o vendedor retira minha passagem, sorri, pergunta sobre meu trabalho jornalístico e sobre o Brasil. Desço e me dirijo ao guichê de uma agência de turismo. Minha intencão: fazer um tour pela cidade a tarde para ganhar tempo, conhecer alguns monumentos. A atendente diz que só tem bilhete para o dia seguinte. Pego o folder e decido ir à sede da agência, próximo ao Connaught Place. Tomo um riquixá movido a pedal. O rapaz humilde promete me deixar no destino. Mas toma outro caminho. Reclamo e ele timidamente diz que está contornando a área. Quando cansou de pedalar, parou numa rua estreita tomada por lama (choveu na noite anterior) e me pede para solicitar orientação a um comerciante. Este e outro rapaz dizem que o riquixá não pode chegar a área a que me destinava (o interesse do moço do riquixá era apenas levar minhas 30 rúpias). Me aconselham a tomar um auto-riquixá (motorizado) ali mesmo e sou informado de que a agência que procuro fica em frente ao templo de Hanuman.
Era tudo o que eu buscava. Mais uma vez fui guiado pela intuição! Tenho muito interesse em Hanumam, o macaco-deidade. Em vez de seguir para a agência, desembarco no templo de Hanuman onde uma multidão, ao estilo Juazeiro do Padre Cícero, faz fila, todos descalços , para entrar no templo do macaco divino. Hanuman é um dos mais queridos deuses hindus. Na mitologia ele é o macaco voador que serve a Rama, encarnação de Vishnu. É poderoso e bondoso. Fotografo a fila, as oferendas de guirlandas de flores e os pães, frutas, castanhas e doces, estes depois distribuidos aos sadus (homens renunciantes) e pedintes que se aglomeram junto ao templo.
Entro na fila. Um rapaz, repete atrás de mim um mantra para Rama, Sita e Hanumam. Nas pausas converso com ele. Ele informa que terça-feira é o dia de Hanuman. Dai as oferendas e a multidão. Ensina-me o mantra. Entrego meu tênis a um guardador de sapatos (custa 7 rupias), uma profissao de bom movimento junto aos templos hinduistas e muculmanos. Passo pelo detetor de metais e entro com a multidão no pequeno templo, repleto de imagens, inscricões em sânscrito no mármore (trechos do Mahabaratha). Nada pode ser fotografado . Vou até o local onde as guirlandas são recebidas por auxiliares e a comida e levada a boca de um Hanuman esculpido em alto relevo. A multidao badala os sinos ao entrar, faz gestos de contrição, alguns se prostram, todos tocam todas as imagens, inscricoes, a água da fonte, os degraus e levam a mão à testa.
A romaria passa pelo altar principal de Hanuman, os de Rama e Sita, de Ganesha (o filho de Shiva e Pavarti, com sua trombra de elefante) e outras deidades, todos repletos de pétalas de flores, notas e moedas de rúpias, em toda parte pequenas urnas para receber dinheiro. Muitos veneram o lingam (insígnia) de Shiva, no caso o pênis do deus da transformação, símbolo da fertilidade e da vida, batem com a cabeça na escultura e fazem pedidos. Ao lado do altar de Hanuman, um sacerdote brâmane, sentado em postura de lótus, com veste reluzente, mas simples, dedos com muitos anéis dourados. Em frente ao altar de Rama, homens e mulheres, com o ajna (chacra frontal) marcado por cinza colorida (vibhuti), recitam baixinho textos de um pequeno folheto. Há quase êxtase na multidão. Muitos jovens estão presentes. Hanuman é invocado por para ajudá-los nos estudos, a passar no vestibular... Reverencio Hanuman. Observo tudo com respeito e sigo a fila da saída, até à simpática velhinha que guardou o meu tênis.
Junto às cinzas de Gandhi Sem almoçar, cruzo a rua e me dirijo a empresa de turismo, ainda a tempo de tirar o bilhete para o tour da tarde, às 14h25. Circulo um pouco antes. Vou cambiar dólares. Prédio de escadas estreitas, escuro, mas ja sou de casa, circulo sem receio. Em três horas e meia de passeio visitamos o Lal Quila, ou Red Fort, marco do império mongol, que ocupa uma área de 2 quilômetros na Old Delhi (a parte mais antiga da capital da India). Um conjunto de palácios que mostra a glória de um império que passou, enquanto os hindus permaneceram. O guia nos leva ao hall do trono do imperador, explica a arquitera e as paredes de pedra e areia vermelhas. É preciso ter saúde para acompanhá-lo. Para compensar o caos do trânsito, ele se apressa para não perder a hora de acesso aos monumentos e exige que todos corram. Até eu, que ando rápido, cansei. E havia senhoras e crianças, todos indianos.
Cinco rapazes do estado de Utaranchal se interessam pela minha máquina fotográfica, comecamos a conversar e eles me ajudam a clicar(na foto à direita, eu e essa turma diante de um dos palácios do Red Fort de Delhi). Como sempre, falamos um pouco sobre futebol e eles citam de cor os jogadores de nossa seleção. Chelem, o rapaz mais prestativo, diz que torce para um time (mas nao consigo entender o nome). Os indianos são muito curiosos, adoram máquinas digitais, sempre cercam a gente quando estamos fotografando, fazem perguntas. Todos simpáticos.
Visitamos ainda o belíssimo jardim do Raj Ghat, onde estão guardadas as cinzas do Mahatma Ghandi (foto à esquerda). Para entrar até a urna de mármore, quardada por um pira sempre acesa, e preciso deixar os sapatos na portaria. Fotos rápidas. Seguimos para a tumba de Humayun, o primeiro monumento mongol, de a arquitetura persa, que lembra o Taj Mahal. Uma coisa esplendorosa, patrimônio mundial. Uma área imensa, com vários palácios. Faco fotos mas apanho na regulagem da maquina . Os rapazes de Utaranchal me ajudam. Outros dois indianos, com suas famílias, trocam palavras comigo e me desejam boa estadia. Sou o único estrangeiro naquele passeio. Estou me sentindo mais em casa. A Índia já não corre o risco de me decepcionar.
Na volta ainda circulo pelo Connaught Place, vejo vitrines, como um sanduba vegetariano (imaginem: no MaDonalds!) Ao sair, vejo na galeria um rapaz que prepara estranhas poções sobre uma folha (cremes, flocos como de milho, farinha escura). Manipula o material e dobra as melecadas folhas com a mesma mão que manuseia o dinheiro. As pessoas simplesmente recebem as duas folhas dobradas e meladas de creme e as colocam na boca, saboreando o recheio. Quando ele fica só, pergunto o que é. Ele não responde. Pergunto se é comida ou remédio. Ele não responde. Não sabe falar inglês. Apenas 10% dos indianos falam inglês. Aqui há 16 idiomas oficiais, o inglês é um deles, e quase 2 000 dialetos. Descubro depois que a estranha poção é o Betel, preparado com sementes de uma palmeira asiática. Dizem que é bom para o estômago e para o cérebro. Deixa a boca e os dentes vermelhos. As ruas e muitas áreas fechadas da Índia estão marcadas por cusparadas avermelhadas. Em alguns locais há placas que pedem “Don´t spit” (não cuspa).
Tomo um riquixá e, já sem medo da loucura do trânsito, me divirto. É quase como se estivesse num daqueles carrinhos de parque infantil, só que aqui não existem as trombadas. No caminho para o hotel falta luz (a Índia está em grande expansão econômica e enfrenta déficit de energia), a aventura fica mais eletrizante. A India está me reconquistando.
04/01/06 – No Qtub Minar, um marco do Islam na Índia
Foi um dia absolutamente tranquilo. Acordei tarde para o café da manhã (que não está incluído na diária). Aproveitei o sol (ontem estava nublado e muito frio) para refazer algumas fotos do trânsito louco. Volto à estação de trem e dessa vez levo quase 2 horas para marcar novas passagens (havia muitos estrangeiros hoje no setor). Saio de lá às 3 da tarde e, portanto, sem tempo para visitar o super parque temático Akshardham (o tema é a espiritualidade hinduísta) que acaba de ser inaugurado nos arredores de Delhi e para ver um espetáculo de teatro e danças típicas (deixo isso para a minha volta aqui, em fevereiro). Mas depois de fazer um lanche apressado na area do Connought Place, acerto com um motorista de riquixá e vou visitar o Qtub Minar Complex (foto à esquerda), que já foi considerado uma das sete maravilhas do mundo. É o monumento muçulmano mais antigo da Índia (do seculo VII). O segundo maior minarete do mundo. Uma torre fantástica em meio a um conjunto de jardins e arcos,a 12 quilômetros do Connaught Place. Uma maravilha. O motorista pede 350 rúpias para me levar , esperar e trazer de volta. Topo (são cerca de 30 reais) Estou à vontade. Me divirto com a loucura do trânsito e o passeio no riquixá. Um barato. Chegamos quase na hora de encerrar a visitação ao monumento. Ruim para foto. Mas aproveito. Saio já na escuridão, faco fotos da iluminação decorativa. A volta é ainda mais divertida. O motorista quer me levar para ver um mercado debaixo de um viaduto. Digo que estou atrasado e rumo para a área central de Nova Delhi.
Acabo de jantar, e muito bem. Venho usar a Internet e encontro a notícia de que, a partir de hoje, internet de graca para os hóspedes só pela manhã. Escrevo estas linhas e vou já para o quarto para arrumar a mochila. São 23h14 e devo acordar às 5h para pegar o trem para Haridwar, no estado de Utaranchal. Não há trem para Rishikesh. De Haridwar, perto do Himalia, pegarei ônibus ou carro para Rishikesh, onde deverei buscar abrigo em algum ashram (comunidade religiosa). Voltarei a Haridwar para subir uma montanha da cadeia do Himalaia. Mas no dia 9 estarei rumando para Agra, onde visitarei o palacio Taj Mahal e a cidade-fantasma Fathepur Sikri, fundada pelos mongois e nunca habitada. Já estou gostando muito da India.
05/01/06 – Em Rishikesh, na presença de Rama
Acordei as 4h30 para seguir viagem para Rishikesh, a cidadezinha no norte da India onde os Beatles encontraram pela primeira vez o guru Maharishi, na década de 60, intensificando a new age no ocidente. Na verdade, só dormi 3 horas. No check-out do hotel Ajanta, em Delhi, escuridão. Como na chegada, faltou luz. Pego um riquixa com tração humana (uma bicicleta com uma pequena carruagem) e circulamos no breu total até a estação de trem. As mochilas pesam demais e eu tenho ainda de subir várias escadas e atravessar para o outro lado da estaçãoo, pois meu trem sairá da plataforma 12. Há uma multidao de indianos deitados no chão e a sinalização é precária. Na correria cheguei a sentir pequena dor no peito (ah,meus 53 anos!), acho que devido ao peso. Quando o trem chega, entro no vagão, me instalo, mas pouco depois chega o dono da cadeira. Eu havia tomado o carro errado e sai em correria para encontrar o meu vagão e o meu lugar. Bom serviço na primeira classe, pequeno café da manha e almoço.
Ao lado, um rapaz de 23 anos. Saylesh Singh, lê um livro. Sigh solta a língua, depois que lhe pergunto sobre hinduismo. Ele é executivo de vendas de uma grande industria de Delhi e, aparentemente, conhecedor profundo das tradicõess religiosas. Falamos sobre mantras, gurus, hinduismo e ciência, os poderes de Hanumam e de Shiva e sobre a invasao de costumes ocidentais na Índia (sempre respeitadadas as minhas limitações de comunicação em inglês). Ele me fala uma coisa importante: " Somos flexiveis. Nossas estratégia é absorver e transformar". Foi assim que a civilização hindu sobreviveu a todas as invasões e dominações do passado.
Seguimos juntos até Haridwar. Trocamos cartões e ele me convidou para um café na sua empresa, em Delhi, em fevereiro. Na estação de Haridwar, há uma enorme escultura de Krishna (foto ao lado, feita às 6h). Ele está por toda parte na Índia. A religiosidade aqui permeia todas as atividades. Há uma cosmogonia que envolve a medicina, a psicologia e mesmo as atividades do dia-a-dia. Na recepção das pequenas e grandes empresas há imagens das deidades - principalmente Krishna (às vezes o Baby Krishna), Hanuman, Ganesha e Ma Durga (Kali). As imagens são enfeitadas com guirlandas de flores amarelas e, no início do dia, faz-se ali um puja (adoração e oferenda) e se acende incensos. Na verdade há outras coisas onipresentes aqui, além dos pequenos oratórios: o cheiro de incenso, os sinos nos lugares sagrados e até na porta da Pizza Hut de Nova Delhi (todos badalam para ter sorte), as vacas e os macacos que circulam livremente e são muito dóceis (aliás todos os animais, os chacorros também), os sapatos sempre deixados aos pés das escadarias dos templos e em muitos outros lugares. Sempre se entra descalço, em sinal de respeito e para manter a limpeza do local.
A varanda e o kirtan Com a mochila pesando, atravesso a avenida e chego a pequena e suja estacão de ônibus de Haridwar, onde espero um para Rishikesh, a 24 quilometros dali. Ao chegar ao meu destino, sou cercado por motoristas de riquixás. Não consigo entender direito o que dizem (o sotaque parece ser mais complicado, com muitos ll e dr no meio das palavras), mas peço a um deles para levar-me ao Omkarananda Ashram, um pouco distante do agito do centro. Pago 150 rupias (6 dólares), mas ao chegar lá, nao encontro vaga. Dois religiosos me encaminham gentilmente para outro ashram - o Omkaranada Sadam. Mas antes vou ao Shivananda Asharam, onde subo , com mochilas nas costas, uns 100 degraus, para receber a informação de que ali também não há quarto disponível. No Omkarananda Sadam fui bem recebido. Me deram a chave do quarto simples, amplo e limpo (para três pessoas, mas só tinha eu) Localização privilegiada junto ao rio sagrado Ganges, com varanda e vista para uma paisagem encantadora do rio e da montanha. Mas não há água quente e o frio aqui é forte, a noite beira zero grau. Não há toalhas também.
Nessa tarde, mesmo com fome, cruzei o rio num barco e fui acompanhar alguns pujas (oferendas) no crepúsculo do outro lado do Ganges, onde há muitos ashrans. Paro numa lanchonete e uma vaquinha que visita a loja se encanta comigo. Me lambe todo. Quer biscoito. Dou alguns na boca. Saio e ela me acompanha, sempre me lambendo. No inicio da noite, acompanho de minha varanda, o kirtan do outro lado do rio, no ashram Parmath (foto à esquerda, feita de manhã cedo, sob neblina). É quase uma superprodução. Mas me fixo na essência. Me emociono com os bajans entoados no início de noite, o rio fluindo tranqüilo, molhando a cidadela de Rama, Sita e Hanuman, iluminada por luzes azuis e esverdeadas, com lindo reflexo nas águas. Os hindus são calmos, dóceis, sorridentes, mas são muito barulhentos durante as celebrações religiosas.
Aqui tudo fecha às 9h da noite. E há sempre paradas da energia elétrica. Vou dormir cedo e cansado.
06/08/06 - No templo do Krishna negro e a vista do Himalaia
Acordo às 4h30 da manhã e ja ouço o som de mantras e sinos nos templos. A torre com as imagens de Rama, Sita e Hanumam, do outro lado do rio, está ainda iluminada e muito bonita. Há varias torres-santuários como essas ao longo do Ganjes, com imagens de deidades hindus. Sigo para o templo de Krishna, no ashram Shivananda. Templo pequeno, porém bonito, com mandalas coloridas, macacos pulando sobre os arcos. Ao lado está havendo um satsang, reunião com um guru, mas cheguei atrasado e não pude entrar. Depois o pessoal começa a recitar trechos do Baghavad Gita. Só ouco. Aprecio as imagens no templo, alguns jovens já estao sentados junto à parede, em postura de lótus, meditando ou orando em silêncio.
Os auxiliares preparam o altar, colocando guirlandas na pequena imagem de Krishna negro (Shyam) e nas de Rama e Sita, Durga e Hanumam. No centro do oratório, há um lingam de Shiva (o que se repete em todos os templos),que é reverenciado pelos sacerdotes e fieis. É um símbolo de vida e força. Aos poucos os tapetes vermelhos do templo vão sendo tomados por homens e mulheres (em lados separados) e duas devotas comecam a entoar o conhecido mantra Om Namanh Shivay, em vários arranjos. Um lindo momento. De repente um sinal de sino. Todos se levantam. O brâmane entra pela porta da frente. Bate com um martelo num prato metálico e um tambor eletrônico (!) é acionado, marcando o ritmo com o grande sino à porta do templo. Um baralho ensurdecedor.
As imagens são reverenciadas pelo sacerdote com fogo (três movimentos para cada uma ), enquanto o sacerdote recita em sânscrito, a lingua clássica da India. Os movimentos se repetem, cada vez com mais candelabros até que uma pirâmide de fogo é manipulada pelo sacerdote juntos as imagens, Após isso, os presentes formam filas para passar a mao sobre as chamas sagradas. A worship está encerrada. E todos saem circundando o altar.
O sol começa a surgir. Vou percorrer a margem do Ganjes e fotografo os altares no Ghat (escadarias que terminam no rio) do meu ashram. Encontro uma garota. Peco-lhe para fazer uma foto minha. Falamos alguns instantes em inglês, até que ela pergunta de onde eu sou e descobrimos que somos brasileiros. Ela, Ana Cristina, uma dentista de Uberlândia praticante de Yoga, veio a ìndia com um casal amigo, também de Uberlândia: Milton Carneiro e sua mulher Fernanda (na foto ao lado, a partir da esquerda, Fernanda, Milton e Ana na entrada do templo de Krisna, no ashram Shivananda). Ana pergunta se não quero ir comeles a Kunjapuri, uma montanha a 15 quilômetros de Rishikesh onde há um templo no cume de onde se pode apreciar os picos nevados da cordilheira Himalaia. Topo.
Ah, o Himalaia!
Eu os três mineiros (Ana, Milton e a mulher Fernanda) tomamos café no Madras, um dos bons restaurantes recomendados pelo Lonely Planet e The Rough Guide) e em seguida alugamos um taxi Ambassador, o velho carro que é marca da India. O motorista Shing adora quando comeco a conversar sobre hindusimo e a cantar mantras. Ele é devoto de Durga. O carro nos deixa perto do templo, mas temos de subir ainda 200 degraus. Não deu para fazer boas fotos no topo da montanha. O reflexo do sol do meio-dia na neve do Himlaia estoura a imagem (mas o Milton consegue clicar a imagem ao lado, em que se vê ao fundo os picos gelados da cordilheira).
Na volta paramos no luxuoso spa Ananda, numa montanha diante do Ganjes. Luxo mesmo. E na chegada a saudação de músicos que tocam canções típicas, adequadas para meditação (na foto à direita, tento relaxar com eles). Restaurante onde comemos comida fina, bem cara para a India, mas ao preco de um almoço normal em São Paulo – uns 40 reais. Ironia: tive um pequeno distúrbio intestinal após o almoço. O lugar está cheio de gringos americanos e europeus. Fomos recebidos por um dupla de hindus, tocando flauta. No final, o casal mineiro resolve ir à boutique, finíssima. e faz compras. Aproveito para ir... ao banheiro. Após deixarmos o casal em um ashram, eu e a Ana vamos direto a um local onde e possível descarregar o cartão da maquina fotográfica. Ela fica lá, conversando com um guia brasileiro que conhecera dias antes. Ficamos de nos encontrar no kirtan do outro lado do rio, mas aconteceram imprevistos.
Ao descer de riquixá até a ponte, instalou-se a escuridao. Faltou luz e eu senti medo de ficar ali. Peço ao motorista do riquixá que faca meia-volta e me deixe no ponto onde me pegou. Ele está confuso, Eu ainda mais. No caminho ele pára , em meio a escuridão, e chama dois homens de turbante. Conversa algo em Hindi, a lingua de 40% dos indianos. Os homens me abordam, em inglês, eu digo que quero voltar ao ponto de partida, eles saltam para dentro do riquixá e mandam que o rapaz siga. Deu um friozinho na barriga. O que iria acontecer? Seria assalto? Mais uma vez o nosso pensamento ocidental malicioso e viciado. Me entrego a Deus. A verdade é que eles me ajudaram (nem perguntei se são policiais, mas pareciam). No final, tentei dar uma gorjeta. Eles nao aceitaram.
Só saí dali quando passou um riquixá cheio de gente , em direcão ao meu ashram. Naquele dia não houve kirtan do outro lado do rio. Me desencontrei da Ana, mas acabei encontrando os amigos delas no Madras Café, onde jantei. Contratei um riquixá para me levar às 5 da manhà à rodoviária, a fim de eu pegar um ônibus para Haridwar, onde deverei embarcar, de trem, para Agra, a cidade do Taj Mahal.
Mensagens de Jomar Morais a familiares e amigos durante seu primeiro mochilão na Índia
ANTES de ler este relato, é indispensável que você veja a reportagem Índia - a Deusa de Mil Faces, de Jomar Morais. DEPOIS de ler este relato, é recomendável que você veja a reportagemÍndia - Dez Anos Depois, do mesmo autor.