A sequência do périplo indiano de JM: Delhi, Haridwar, Rishikeshi, Agra, Varanasi, Gaya, Bodhgaya, Calcutá, Bangalore, Whitefields, Puttaparthi, Panaji, Old Goa, Anjuna, Vagator, Mapusa, Puna, Aurangabad, Ellora, Mumbai, Elephanta, Delhi.
Shiva
Ganesha
Gayatri
Buda
Sarasvati
Krishna
A DEUSA DE MIL FACES
Como suas deidades, que mudam de rosto e humor, a Índia - a nova superpotência
da Ásia - surpreende o visitante com belezas e contrastes em uma viagem no tempo
por JOMAR MORAIS

É difícil amar a Índia, disse Jean-Claude Carrière, um dos grandes roteiristas do cinema contemporâneo, autor de um livro em que expõe sua paixão por esse país distante e enigmático. Quarenta dias depois de percorrer mais de 10 mil quilômetros em território indiano, visitar cidades e vilas, conhecer uma parte de seus templos milenares e de sua modernidade caótica, pousar em ashrams de diferentes gurus e interagir com o seu povo em situações que, não raro, desafiam a lógica, peço licença para acrescentar outro detalhe à constatação do cineasta francês. É também difícil, muito difícil, não se deixar seduzir pela Índia. E mais difícil ainda esquecê-la.

Amando-a ou detestando-a – e as duas reações podem ocorrer simultaneamente -, voltamos de lá com um selo indelével aplicado à mente e ao coração, uma marca formatada por choques e êxtases que, de algum modo, nos faz refletir sobre o que jamais pensamos antes.
Monges da Cagiupay Sangha, em Bodhgaya e, abaixo, o caos diário do trânsito em Delhi. 
Mais que misteriosa e mística, a Índia é diversificada e contraditória. E essa predisposição para lidar com os opostos e a acolher tudo, tudo transmutando em seu caldeirão de regras escritas e ocultas, é a primeira causa de espanto para quem chega trazendo na bagagem uma visão idealizada do país. 
Não é confortável ver o clichê de um lugar tranqüilo, asséptico e espiritual, onde as pessoas entoariam mantras o dia inteiro, dissolver-se na poeira, na fumaça e na sujeira das ruas, na algaravia constante das multidões – onipresente num país com mais de 1 bilhão de habitantes –, na miséria exposta de milhões de pessoas, na esperteza de certos mistificadores e, sobretudo, no trânsito infernal das cidades, onde pedestres, carros, riquixás (triciclos movidos a motor ou a pedal) e vacas têm que improvisar acordos na ausência de semáforos.
Para alguns, é a frustração de um projeto de vida. “Já vi pessoas que vieram para ficar três meses retornarem na primeira semana”, disse-me o canadense Gilles Bacon, um professor de yoga de Montreal que, pela terceira vez, está passando 1 ano na Índia. “Algumas choram, decepcionadas”.
Como os conquistadores arrogantes de outrora e os preconceituosos de todas as épocas, os que se agarram aos contornos imaginários de uma Índia etérea e pura acabam impossibilitados de perceber uma outra sutileza desse complexo subcontinente. Na Índia, o presente não descarta o passado e muitas eras compartilham o mesmo espaço, numa aquarela de hábitos, idéias, crenças, filosofias e também ciência que se relacionam até quando se encontram em aparente rota de colisão.
Quem consegue superar esse choque inicial, logo percebe que a Índia, apesar de seus contrastes, não é um país mergulhado no atraso, em descompasso com o mundo globalizado. Ela detém a segunda concentração de PhDs do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, fornece especialistas em informática para vários países, dispõe de um excelente sistema de comunicações, envia satélites ao espaço e até virou potência nuclear.
Favorecida por um estado laico e democrático, sua economia cresce ao ritmo de 7% ao ano e pode tornar-se a terceira do planeta até 2040, segundo algumas previsões. É, no entanto, zelosa de seu patrimônio cultural e espiritual de mais de 5 000 anos e a ele se refere constantemente para viver o presente, ainda que não existam garantias de que continuará a fazê-lo para moldar o futuro.  Conhecê-la é desfrutar de uma oportunidade rara de realizar uma viagem física no tempo, navegando na diversidade e complexidade do único império ancestral a sobreviver quase intacto nos nossos dias, com seu arcabouço filosófico a cada dia mais solicitado no ocidente.
Rishikesh: o Ganjes e o puja dos hindus. Abaixo, um templo construído em caverna de Ellora
Acima e ao lado, cenas de Varanasi, a cidade sagrada onde as eras se fundem e as deidades determinam o cotidiano.
Indianas junto ao Forte Daulatabad, na hora do almoço, e JM no Templo Grishneshwar,  próximo a Ellora
Em Varanasi, a mais sagrada das sete cidades sagradas do hinduísmo, deparei com um retrato perfeito dessa acumulação dos séculos. Numa viela enlameada, uma vaca, ciosa de seu status divino, aguarda a passagem de devotos de Shiva, a caminho do Templo Dourado, esgueirando-se sob a placa de uma lan house bem equipada, onde jovens se conectam ao resto do mundo pela internet. Pés descalços e testas marcadas pelo vibhuti vermelho, a cinza sagrada com a qual os hindus assinalam o ajna – o olho astral, entre os supercílios -, muitos na multidão portam telefones celulares sofisticados, produzidos a alguns quilômetros dali e exportados para vários países. Quando uma brecha se abre entre os fiéis, a vaca cruza a viela, entra por uma pequena porta e, finalmente, acomoda-se num curral doméstico de menos de 20 metros quadrados para espanto de visitantes, como eu. Que país conseguiria manter assim, tão próximos e interagindo, uma era de rituais totêmicos e os tempos cibernéticos? A Índia consegue e, às vezes, isso é difícil de entender se não olharmos para a mitologia sobre a qual ela existe e se move.
À margem de rios e na solidão das florestas, os indianos conceberam no passado um universo que - ao contrário daquele modelo estreito e linear, centrado na Terra, adotado por muitos séculos no ocidente - tinha dimensões incomensuráveis e ciclos temporais que se repetem e se entrelaçam. Nessa representação, é possível a convivência dos opostos e compreensível a existência de um panteão de divindades que beira os 36 000 deuses e semideuses, cada um expressando tão somente aspectos, diferentes e polarizados, de uma única substância. Desde a concepção védica, baseada em arquétipos e cultos tribais, o universo indiano é complexo e repleto de atalhos que realçam a impossibilidade de um sentido único, evidenciam a ilusão das formas e nos convidam a fruir o prazer dos encontros inevitáveis. A Índia vive esse modelo. Para entendê-la, é preciso que esqueçamos, ainda que por um breve tempo, o pensamento lógico de nossas elaborações e comparações, permitindo-nos o deleite em suas cores e crenças sem a preocupação de explicar coisa alguma.
Em Bodhgaya, a cidade onde Sidarta Gautama tornou-se o Buda, ao ver budistas e hinduístas praticando rituais distintos sob o mesmo templo, perguntei a meu jovem guia, Habi, qual a sua religião. Habi respondeu, sorrindo: “Na Índia, todos somos hinduístas. Tudo é hinduísmo”. Não poderia ser mais preciso. O que chamamos hinduísmo – e essa é uma palavra criada pelos ingleses no século XIX – não constitui uma doutrina homogênea, mas uma amálgama de crenças ancestrais, seitas e filosofias que têm por base a idéia de um universo multifacetado, essencialmente inexplicável e só compreensível pela experiência.
Talvez esteja aí o espírito zen que tantos buscam e nem sempre encontram nas peregrinações junto ao Ganjes e nos retiros com gurus: uma abertura fundamental para a vida, a disposição de fluir com ela e, ao contrário do que imagina o senso comum, também para interagir e mudar com as circunstâncias.
Na mitologia hindu, registrada parcialmente no gigantesco poema épico Mahabharata e no Ramayana, nem os deuses estão presos às suas identidades e atribuições. Shiva já foi Rudra na pré-história védica. Gayatri, um raio do sol, metamorfoseou-se numa deusa de cinco cabeças. Indra perdeu parte de seu poder. Textos sagrados se sucederam e se completaram ao longo de milênios. Abaixo desse Olimpo, a Índia humana e concreta também se move, mais rapidamente do que podemos perceber à distância, na direção de um futuro só em parte decifrável.

As vitrines do Connaught Place, a área do comércio chique de Delhi, não escondem, com a sua profusão de modelitos ocidentais e roupas sumárias, que os indianos estão sendo assediados por novos desejos. A escassez de santuários hinduístas nas ruas de Bangalore, a capital da informática e da biotecnologia na Índia, talvez seja um sinal de que Krishna e Ganesha já disputam espaços com os deuses da tecnologia. A explosão em Mumbai - a locomotiva econômica e cultural do país -, de bares que vendem bebidas alcoólicas e de  boates liberais onde até um tímido movimento gay mostra a cara apontam para o início de uma revolução de costumes numa Índia tradicionalmente conservadora e pacata.

O ELEFANTE SE MEXE
Um hinduísta diria que Ganesha, o deus com tromba de elefante, resolveu retirar, de uma tacada, os maiores obstáculos à marcha da Índia. O país virou estrela da economia mundial neste início de século e já há quem aposte, como a consultoria americana Goldman Sachs, de que até o ano 2040 será a terceira força econômica do planeta, só atrás dos Estados Unidos e da China. Para quem conhece a paisagem social indiana, é difícil acreditar que isso é real. A fórmula dessa transformação, no entanto, tem a ver com o perfil democrático da sociedade, a estabilidade das leis e a liberdade em que operam os agentes econômicos e não com qualquer expediente mágico.
A Índia cresce ao ritmo de 6%  ao ano - em 2005 alcançou 7,5% – e ostenta uma emergente classe média de 200 milhões de pessoas, já mergulhada nas delícias do consumo. Nesse momento, a ampliação e  modernização da infraestrutura de transporte – super-rodovias e metrôs – fazem do país um canteiro de obras. Há uma febre de empreendimentos privados, depois que o estado abandonou a tendência socialista de outrora e passou a cogitar até da privatização de serviços públicos, como aeroportos e a rede de saúde. Tornou-se rotina o assédio de governantes e empresários dos países desenvolvidos, em busca de alianças estratégicas e bons negócios.
Ainda assim, o crescimento indiano é pouco visível devido à dimensão colossal de antigos  problemas. O país tem mais de 300 milhões de pessoas vivendo com menos de 1 dólar por dia, possui o segundo maior contingente de infectados pelo vírus da Aids e lida com cinturões de pobreza mesmo junto a áreas de excelência, como o “Vale do Silício” da região de Bangalore. A médio prazo, porém, não há dúvida de que a Índia será uma carta influente no jogo da economia global.
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Teatro Katakali (acima), no Teatro Nacional, e o alfaiate popular trabalhando na rua, em Delhi.
O espírito da Índia ancestral e ascética sobreviverá a esses tempos de Mc Donalds e Pizzas Hut, de rock e música tecno, debates na imprensa sobre liberação sexual e consumo explícito nas ruas e na televisão?
Talvez a resposta certa para essa questão seja a que ouvi do executivo Shaile Singh, no trem que me levou a Rishikesh. “Há séculos os ocidentais despejam aqui suas novidades. Nós as absorvemos e as transformamos”, disse o jovem, devoto de Hanuman, o mítico macaco servidor de Rama, invocado pelos hindus nas situações em que se faz necessária uma saída criativa. Talvez a razão esteja com a serenidade de Deepak Lakshman, um engenheiro de cabelos grisalhos que encontrei a caminho de Puri, no extremo leste. “Chegou a hora do equilíbrio”, afirmou. “É preciso aproveitar o melhor dos sistemas de vida do oriente e do ocidente”. Talvez, enfim, estejam certos os que acreditam que a cosmogonia e o conjunto de tradições que resistiram a séculos de invasões e domínio estrangeiro sucumbirão em breve ao furacão da cultura ocidental globalizada.
Na dúvida, o melhor é arrumar as malas e ir já conhecer o que a Índia tem a mostrar como senhora do tempo, uma deusa de mil faces.
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Diário Íntimo de Um Mochileiro na Índia
Fotos e relatos intimistas da 1ª experiência mochileira de Jomar Morais na Índia







Texto de abertura da edição especial Índia da revista Viagem e Turismo
em dezembro/2006, editada por Jomar Morais

ISTO É ÍNDIA
O trânsito caótico e a vaca sagrada em Delhi
Dança folclórica indiana no teatro
O Himalaia começa logo ali
HARE ÍNDIA
Melhor assistir este vídeo em tela cheia


10 000 QUILÔMETROS
Trimurti de Elefanta: Brahma, Vishnu e Shiva
Casamento típico em Mumbai
Sob a árvore de Buda
Uma figueira sagrada e um templo milenar, cercado de jardins, fazem do lugar
onde nasceu o budismo uma das principais atrações da Índia

O coro de vozes graves ecoa no meio da tarde e a cidadezinha empoeirada parece hipnotizada pela sinfonia. Om mani padme hum, Om mani padme hum (pronuncia-se Omêni-péme-um), repetem sem cessar milhares de monges sentados no chão, pernas cruzadas, ocupando os jardins em torno do templo Mahabodhi. Suas vestes vinho e alaranjada, as cabeças raspadas, as bandeirinhas multicores penduradas em varais, os fiéis praticando prostrações, a fumaça e o cheiro de incenso espalhados pelos quatro cantos completam esse quadro de som e cores, quase etéreo, no lugar mais sagrado do budismo. Que sorte! Cheguei a Bodhgaya em um momento especial: o da cerimônia final da visita da Cagiupay Sangha, evento anual que reúne monges e exilados tibetanos – e, não raro, o próprio Dalai Lama – ao pé da Bodhi Tree, a figueira sob a qual o príncipe Sidarta meditou e alcançou a iluminação.
Entre novembro e fevereiro, Bodhgaya transborda de peregrinos e turistas, mas não perde o ar de vila pacata, onde se vende frutas em balaios no passeio central, sempre colorido pela presença de jovens monges, muitos vindos de outras cidades e países. Centenas de forasteiros chegam para receber aulas em monastérios alinhados na rua do templo ou para meditar junto a árvore histórica, atrás do santuário, eternamente engalanada de faixas e bandeiras coloridas trazidas por peregrinos. Ali, uma plataforma de cimento e uma imagem assinalam o lugar exato onde, há 2 500 anos, Buda mergulhou em profunda introspecção até entender a razão do sofrimento. E, no seu entorno, um conjunto de placas em mármore lembram os passos posteriores de Sidarta, numa espécie de via sacra sem cruz.
Apesar da multidão, o ambiente transpira paz e tranquilidade. No Mahabodhi - na verdade uma estupa (relicário ou tumba budista) cercada de dezenas de outras menores - uma enorme imagem dourada de Buda é venerada ao mesmo tempo por budistas e hinduístas. Para os hindus, Sidarta foi uma encarnação de Vishnu, a mesma divindade manifestada em Rama e Krishna. É possível distinguí-los pelos ruídos e posturas durante as cerimônias, os budistas sempre mais parcimoniosos. E, às vezes, pela encrencas no comitê de administração do templo, onde os hinduístas são maioria. Nem isso nem o fato de que a figueira cultuada agora não é a mesma que acolheu o Buda meditante, destruída pelo imperador Ashoka antes de sua conversão ao budismo, tiram o brilho desse lugar simbólico e especial. A árvore e o Mahabodi, erguido no século III pelo mesmo Ashoka, arrependido, e depois dilapidado e reconstruído no século XIX, fazem parte do patrimônio cultural da humanidade, protegido pela Unesco. Como no passado, eles continuam despertando olhares devotos ou admiradores.
O Buda do Templo Mahabodi, junto à figueira onde o príncipe Sidarta se iluminou, é venerado também por hinduístas
JM sob a Bodhi Tree, a árvore que atrai milhares a Bodhigaia

O CANTO DOS MONGES
Em Bodhgaia, a multidão repete o mantra


Ano 23                                                                                                              Editado por Jomar Morais
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