A RIQUEZA DE UM HOMEM
Postado em28 Aug 2016 21 48 HISTORIAS DE MERICO




Para Odilon Bento Nicolau, engraxate em                                                                       Coronel  Ezequiel nos anos 70, 80...

No que consistirá a riqueza de um homem?  Dinheiro? Saúde? Amor?

Digar se dizia rico. Não tinha dinheiro, vivia só e a sua saúde mental não era das melhores.

Morava há dez quilômetros da cidade, tratava de um pequeno roçado e, aos domingos, engraxava e fazia pequenos consertos em sapatos na feira de Mericó.

Era um homem constantemente apaixonado. Um Dom Quixote sem Dulcineia ou, melhor dizendo, com muitas Dulcinéias alternando-se constantemente.

A rusticidade da vida que levava contrastava dolorosamente com a paixão que parecia substituir-lhe o sangue nas veias e com sua insistente afirmação:

- Tigá é rico!

Boêmio por natureza, ao ouvir Valdick Soriano ou Nelson Gonçalves, adentrava o mundo dos sonhos e, não resistindo a uma dolorosa saudade de origem desconhecida, fechava os olhos, cantava como se estivesse diante da sua amada e mergulhava na bebida.

Não havia um domingo que não fosse assim.  Era, portanto, comum retornar a noite ao seu casebre sem a feira da semana por haver bebido o apurado do dia ou perdido as compras pelo caminho.

Mas, se lhe faltava o saco de feira, sobrava-lhe o sentimentalismo. Cantava pelos caminhos, dando notícias dos seus amores através das músicas que lhes ofertava e dos pedidos de casamento, sempre ratificando:

- Tigá é rico!

Enfim, o que significava ser rico em Mericó? Para quem vivia numa casa de taipa, ser rico significava morar numa casa de tijolos caiada e com alpendre. Para quem andava pé, ser rico era ter um bom cavalo e muito rico, um carro.

Digar não era de pensar muito em coisas materiais. Talvez estivesse entre os que associavam a riqueza ao comer bem.  Ser rico seria comer queijo, carne de boi, feijão de arranca, bolacha no café da manhã e doce de lata ao meio dia.

Viúvo há mais de uma década, apaixonava-se facilmente. Bastava um bom dia, um sorriso, ou um olhar de uma mulher e passava esta a protagonizar mais uma história de amor não correspondido, com direito às canções, poesias e citações estrada afora.

Naqueles tempos foi inaugurada uma casa de drinks em Mericó.  O nome, de fato, não era este. Utilizei-me dele em respeito póstumo ao pudor reinante na época e ao repúdio das boas famílias àquele empreendimento.

Retornando para casa, Digar teve a atenção chamada pela movimentação e pela música do local. Escondendo o saco de feira no pé de uma cerca, entrou de corpo e, sobretudo, de alma na animada festa.

Uma radiola de móvel, algumas prateleiras com bebidas e a sala repleta de casais dançando sem as preocupações comuns às festas sociais.  Mulheres bonitas, roupas decotadas e uma profusão de perfumes transformavam aquele lugar, segundo Digar, num paraíso. Fechou os olhos. Viajava através da música e dos aromas, quando foi trazido à realidade por um leve toque no ombro e uma voz forçosamente sensual.

- Oi, bonitão! Quer dançar?

- Tançá, sei não. – Falou com a cabeça nas nuvens e o coração disparado por aquela voz, aquele perfume, aqueles olhos grandes com o entorno pintado de verde...

- Ah, que peninha.  Então paga uma bebida pra mim...

- Uma, tuas, três, tez... Tantas tizer! – Falou, fazendo-se entender mais pelo gestual e devotamento à dama, do que pelas palavras comprometidas pelas dificuldades fonológicas.

Natina passara dos quarenta e desde que se entendera por gente, excetuando-se as alegrias fugidias da vida noturna, só experimentara tristezas.  Sempre sonhou com alguém que lhe tirasse daquela vida para um lugar seguro, mas com o avançar dos anos sentia este sonho cada vez mais distante. A realidade era que, mesmo sendo atraente, nunca fora uma bela mulher capaz de incendiar o coração de um homem a tal ponto.

- Ati é bom te mais, num é? – Perguntou quebrando o silêncio instalado após uma dose de conhaque.

- É... É bom... Mas bom, mesmo, é uma casa. – Falou, fez um “deixa pra lá” com um gesto e começou cantar acompanhando a música da radiola.

- Tigá é rico. Té morá cum eu? 

- Quem é Tigá, o seu patrão?

- Tigá é eu. Té morá mais eu? Tigá é rico!

Após gastar o restinho do apurado, Digar retomou o caminho de casa, mediante as promessas de Natina de pensar na sua proposta, cantando à sua nova musa.

Durante a semana a dama investigou a vida do pretendente, cujo nome era Edigar, conhecido por Digar.  Era um pequeno agricultor, viúvo, sem família e engraxate. 

Mas nada disso se opunha ao encantamento que provocara nele e, sobretudo, aos recursos que tinha guardado, pois, reforçando o seu pedido de casamento, dera ele a entender que tinha um cofre ou um vaso cheio de valores:

- Tigá é rico! Tá lá em casa... Assim, oh, cheim! 

Já ouvira histórias de pobres que guardavam verdadeiros tesouros, ajuntados ao longo dos anos. Como Digar vivia só, gastava pouco, trabalhava na roça e ainda tinha a profissão de engraxate, bem que poderia ter umas boas economias.  Se aceitasse morar com ele, fazendo bom uso dessas economias, poderia assegurar uma vida sem luxo, mas tranquila.

- Aceito. – Disse Natina a Digar assim que este adentrou o salão no domingo seguinte. 

Seguiram os dois para o novo lar: Ele com o saco de feira nas costas, ela com uma valise com seus parcos e fantasiosos pertences.

A primeira decepção de Natine se deu com o aspecto da casa. Pequena, com os terreiros mal cuidados, paredes deterioradas, portas e janelas escoradas com pedaços de pau e mobília composta por uma mesa, uma cama com colchão de junco e dois tamboretes.  Coisas diversas espalhadas pelo chão, sobre o fogão e penduradas nas paredes, caibros e ripas. Mas, retemperou-se ao lembrar o vaso, ou algo semelhante, cheio de riquezas e não resistindo à curiosidade, perguntou:

- Você é rico mesmo? Mostre!

Tomando-a pelo braço ele a conduziu a um quarto escuro e abrindo uma pequena janela, trouxe à luz um pote, no recanto da parede, com a boca fechada por uma pedra. Sentindo-se aliviada seguiu Natina numa reverência quase religiosa em direção à jarra. 

Ele a deixou só diante do sonhado tesouro. Pensou ela se seria aquilo uma prova de amor. Depois ponderou que não. Seria querer muito... Mas, com certeza, era uma prova de confiança. Animada por estes sentimentos, retirou a tampa do pote e fixou o olhar em seu interior aguardando que as pupilas, adaptando-se à escuridão, lhe revelassem a riqueza de Digá que doravante também seria sua. Enxergando o conteúdo, tateou, enfiou a mão até o fundo da jarra, testou através do olfato e, por fim do paladar.

Escorregando rente à parede, deixou-se sentar no chão, encolheu as pernas prendendo-as pelos joelhos junto ao peito, encostou a cabeça na jarra e ali permaneceu por um longo tempo. Pensou, derramou algumas lágrimas, reviu cenas da sua vida, da infância sofrida até os últimos dias, igualmente, sofridos.

Sentiu-se um pouco aliviada porque ninguém a incomodou. Digar a respeitou no seu silêncio, na sua longa permanência ali.

Ao retornar a sala o encontrou estirado no chão frio, usando uma cangalha como travesseiro e fumando um cigarro de palha com a tranquilidade do justo. Ao vê-la entrar, perguntou:

- Viu, Tigá é rico?  Ati você vai passá bem!

- Fico com você, Digar. Mas só se me prometer que nunca mais vai beber.

- Eu bebia rueno... Agora Tigá tem muié bunita. Num tem mais do tê ruê... Vou é trabaiá pa gente!

Passados alguns anos, Natina, na sua vida simples, concluiu que aquele inusitado tesouro garantira-lhe uma vida sem sobressaltos, cercada de amigos e cuidados, coisas que o dinheiro não pode comprar.

O pote estava cheio de bolachas. Comê-las no café da manhã, no meio dia, à noite e na hora que quisesse era sinônimo de riqueza para Digar e para muitos de Mericó.

Aldenir Dantas.


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Maria de Fatima
06 Jul 2020 20 53
Lembrei de um "Tigá" da minha infãncia, bem parecido com esse, ele também se "apaixonava" fácil e queria casar com qualquer moça que encontrsse e ai! dessa coitada, se desse "corda" pra ele,quando ela tomava "umas" haja "cantoria" e serenata no mais estilo "roedeira" possível.rsrs
Cipriano
17 Sep 2016 07 25
Meus parabns, o texto to real e muito bem escrito. Fiquei f de Digar, um dia Aldenir ainda iremos juntos visitar Digar e Natina.
Aldenir Dantas
30 Aug 2016 20 32
Muito obrigado, Jomar Morais e leitores do Planeta Jota pela generosa recepo aos meus modestos escritos.
Jomar Morais
30 Aug 2016 01 42
Poeta Aldenir, contista Aldenir, a cada publicao voc excede. Parabns.
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