ENCONTRO DE ALMAS
Postado em18 Oct 2016 01 56 HISTORIAS DE MERICO

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Era uma fria noite de agosto de 1930 com a lua cheia flutuando sobre os telhados de Mericó.

Na escadaria da igreja, quatro rapazotes, entre gracejos, caretas e palavrões, experimentavam o prazer da autoafirmação como homens, através dos primeiros tragos de cachaça.

No comando estava Zé de Terto, que, mesmo não sendo o mais velho da turma, era o mais experiente  em bebedeiras e badernas, sendo o único do grupo a ter pernoitado na cadeia.

Um castigo para os pais, uma péssima influência para os que o acompanhavam: assim era visto o jovem, com vinte anos incompletos.

Possuía um impressionante poder sobre os colegas.  E quando o assunto era namoro, na mesma proporção em que inflamava o discurso dos mais velhos sobre o seu caráter irresponsável e suas arruaças, aumentava o número de moças suspirando por ele. Os que não compartilhavam da sua amizade, movidos pela inveja, resmungavam:

- Mulé só gosta de caba ruim! A prova é esse magote de moça correndo atrás desse desordeiro...

Mas, sejamos justos.  O jovem, além de boa aparência, tinha um inabalável bom humor, era cativante e, de tão expressivo, seu olhar chegava a ter um quê de hipnótico.

- Eita que a noite hoje tá é boa pra fazê umas boa presepada. Falou Zé quando o motor da luz foi desligado, deixando a cidade mergulhada na lua da lua.

- Vamos roubar galinha pra tirar gosto?

- Tem vanta, não! Quem diacho vai tratar e torrar?

- Tais é com medo, Chicó!

- Sou lá de tê medo! Eu num tem medo é nem do cão!

- Num tem não, é? Então vai agora na tapera da ladeira e traz um tijolo de lá. Pago uma meiota, se tiver corage.

- Num é medo, não. Num vou porque num quero.

Era medo, sim. Facilmente achava-se um lugar mal assombrado em Mericó. Becos, casas velhas, encruzilhadas, baraúnas em beiras de estradas, covas de pagõos, mas nada que se comparasse à tapera da ladeira.

Fora aquela uma das primeiras casas da região. Não se tem muita informação sobre os seus moradores. Conta-se que vieram de Pernambuco seguindo a trilha dos que ocuparam o Seridó Ocidental. Viveram ali vários anos, criando gado, até que uma tragédia os fez partir.

Dizem que, no mês em que completara 18 anos, a única filha do casal, jovem de rara beleza, fora encontrada morta em seu quarto, sem nada que justificasse tal fatalidade.  

Estendida sobre o leito, a jovem parecia dormir um sono tranquilo, povoado de bons sonhos imortalizados na serenidade de um sorriso.  Na mão, fechada sobre o peito, segurava, ela, um camafeu em ouro e porcelana que lhe dera a mãe como presente de aniversário.

Inconsolada com a perda, a família abandonou Mericó naquele mesmo dia, levando, inclusive, o corpo da jovem para não ser sepultado naquela terra que lhe fora tão ingrata.

Em pouco tempo os bens do casal foram levados por portadores vindos não se sabe de onde e a casa, abandonada e tomada pelo mato, virou tapera. Até o caminho que passava em sua lateral sofreu um desvio fazendo com que ninguém mais passasse em suas proximidades.

Construída na encosta da serra de Cuité,  sacudida constantemente por fortes rajadas de vento e com uma magnífica vista para o vale onde nasceria Mericó, fora aquela, uma imponente e confortável residência.  Passado um século, restavam, apenas, pedaços de paredes, engolidos pelo matagal, demarcando seus vastos cômodos.

Além do caráter, naturalmente, sombrio da tapera, diziam que, nas noites enluaradas, via-se uma jovem de vestido branco e cabelos longos passeando entre os escombros e ouviam-se choros e gemidos de dor.

- Eita que macharia medrosa! Apois eu vou. Mas como é longe que só a mulesta e ainda tem de trazer um tijolo pesado que só o diabo, tem que ser uma garrafa e não meiota.

Ninguém acreditava que, não obstante sua afoiteza, Zé de Terto tivesse coragem para tanto.  Mas ele teve, partiu e enquanto os demais ficaram contando anedotas e bebendo a luz da lua.

Passava da meia noite quando um deles, levantando-se, incitou os demais a irem embora.

- A gente tá aqui é sendo besta. Zé foi é pra casa dormir. Já dava tempo dele ter ido 10 vezes na tapera. Eu vou é pra casa...

Amanheceu e o jovem não voltou para casa. A mãe tinha certeza de que algo lhe acontecera.  Por mais trabalhoso que fosse, não era seu costume dormir fora de casa. Mandou o filho mais velho a casa dos amigos que, igualmente receosos, falaram sobre a aposta e o acompanharam até  a tapera.

Encontraram-no deitado sobre o capim amargoso seco que invadira a casa no local onde, possivelmente, fora o quarto da jovem falecida.  Confortavelmente estendido, como se dormisse em macio colchão de penas , dormia ele profundamente, com a boca entreaberta e um semblante sereno, como se sonhasse com algo maravilhoso.  A mão direita, fechada sobre o peito esquerdo, parecia proteger objeto ou segredo de grande valia.

Após uma sacudidela do irmão, o rapaz acordou encadeado pelo sol, estranhando a presença dos amigos, mas, sem perder a serenidade nascida do sonho bom que, possivelmente, tivera.

- Tás doente, Zé? Tás sentindo algum coisa, home de Deus? Perguntou o irmão, fitando-o nos olhos.

- Tô não, meu irmão. Acho que passei a vida toda doente. Até ontem de noite.  Agora tô mais doente, não! - Respondeu com uma serenidade nunca vista e os olhos fixos no horizonte.

- Diacho de conversa é essa, home? Vamo é simbora daqui que, até de dia, esse lugá me deixa arrepiado.

- Tenha medo, não! Eu encontrei com ela... Eu não sabia, mas passei todo esse tempo de birra com o mundo por causa dela... Agora que encontrei, tá resolvido...   - Falou, com o olhar e a voz estranha, fazendo vibrar no ar a mão, misteriosamente, fechada.

- Bora, bora! A gente conversa depois... - Falou o irmão, apontando o caminho da saída, preocupado com a estranheza da situação. Parecia-lhe um caso de doidice. Sempre achara que não se deve brincar com coisa do outro mundo.

Os amigos permaneciam silenciosos, comunicando-se apenas por olhares. Além da preocupação com o companheiro que parecia ruim do juízo, havia o receio por tê-lo levado a aquele estado, com a impensada aposta. Percebendo-os preocupados, Zé procurou aquietá-los.

- Fiquem com essa cara não, que tá é bem demais. Perdi a aposta, mas ganhei uma coisa que vocês nunca que iam acreditar, se eu contasse...  

- Que coisa, Zé?

- É segredo. Conto não. Até porque vocês vão achar que eu tô é doido... Mas tá aqui uma prova. - Falou, abriu a mão e mostrou um camafeu em ouro, com a efígie de uma bela jovem, em porcelana.

- Achasse isso? Deve valer um bom dinheiro. Deve ter mais coisa lá, talvez, uma botija...

- Pode ser, mesmo. Isso deve ser só o sinal da botija. Dizem que toda botija tem um sinal.

- Quero saber disso não! Isso aqui não vale só dinheiro. Vale é a minha vida todinha, que eu vivia sem saber porque, nem pra que... Agora eu já sei.

Acreditando que o amigo delirava, calaram-se e seguiram de volta pra casa.

Com o passar dos dias, a estranheza de Zé de Terto não cedeu. Ao contrário, acentuou-se. Permaneceu amigo de todos, mas abandonou as bebedeiras e peraltices geradoras de desgostos e preocupações para a família.

Mesmo advertido de que camafeu era coisa de mulher,  passou a usar constantemente o adereno no bolso da camisa, como algo sagrado, devocional.

A serenidade que encontraram estampada em seu rosto naquela manhã permaneceu gerando estranhamento em uns, encantamento em outros. E como se não bastasse a reviravolta ocorrida no seu comportamento, passou ele a auxiliar o padre nas missas e, de tão aplicado ao trabalho, virou sacristão e, sem alarde, optou pela vida celibatária.

Ao se deparar com a morte, Zé de Terto provocou o último estranhamento aos mericoenses. Além de sorrir serenamente para a ceifeira, guardou, ele, nos lábios aquele sorriso, levando-o para a sepultura, juntamente com o camafeu com que fora, amorosamente, presenteado.



Aldenir Dantas


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