PELA MORAL E PELA FAMÍLIA MERICOENSE
Postado em28 Apr 2019 21 38 HISTORIAS DE MERICO


Eram meados dos anos 60 quando o cabo Militão chegou a Mericó, acompanhado da esposa e de um filho pequeno.

Sua fama de defensor da ordem, da moral e dos bons costumes logo se espalhou pela região. Jamais um policial fora tão severo em relação à moralidade. No foco da sua repressão estavam as mulheres solteiras, as moças bulidas, faladas, indesejáveis à sociedade.

Seu maior orgulho era haver participado da Segunda Guerra Mundial, mesmo não havendo dado nem um tiro, sequer. Quando seu navio chegou à Itália, a guerra havia acabado.

Empertigado, de voz possante e gestos teatrais, comandava e assustava o alunato nos desfiles de 7 de setembro. Um grito seu, diante da manobra errada de um aluno, fazia estremecer toda escola.

Respeitadíssimo em Mericó. Por pouco, as pessoas não lhe prestavam continência. Tão rígida era a sua disciplina militar que dela não abria mão nem no ambiente doméstico. A esposa e o filho, como eternos recrutas humilhados, viviam sob o peso das suas botas.

Um homem íntegro. Um exemplo de patriota. Um pai de família invejável. Era de um prefeito assim que Mericó precisava para acabar com desavergonhamento que tomara conta da cidade. Essas e outras assertivas do gênero passavam de boca em boca na conservadora cidadela.

A mulher e o filho, ouvindo tais comentários, esboçavam um sorriso amarelo e, intimamente, meneavam a cabeça em tom de desaprovação.

O coro dos conservadores mericoenses foi ganhando cada vez mais força e, dez anos após a sua chegada, estava o cabo disputando as eleições municipais para prefeito.

Sentindo que, quanto mais liberava sua índole ultraconservadora e violenta, mais ganhava fama e eleitores, abriu mão das poucas reservas que tinha no falar e pouco faltava para levar seus seguidores à histeria com frases do tipo:

- Não faz diferença se o sujeito roubou um milhão ou uma galinha. Ladrão bom é ladrão morto. Se não matar, deveria ter pelo menos uma mão cortada pra não roubar nunca mais.

- Mulher da vida, moça falada... esse “povim” tem de ficar da sala do meio pra cozinha. Essa gente na rua além de ser uma vergonha, incentiva as outras à safadeza.

-  E pra acabar com essa vagabundagem, vocês sabem que conselho não resolve. Então, o jeito é na pancada. Cipó de mororó no lombo de cabra ruim: comigo é assim!

- Mericó vai voltar pros trilhos, e vocês vão se orgulhar de morar nessa cidade onde todos serão tementes a Deus e dedicados às famílias.

E até com o conhecido tirador de terço da cidade, Zé Pezin, o cabo andou implicando. Certa vez, sem motivo algum, o conduziu à delegacia onde de forma, ora autoritária, ora jocosa, lhe fez uma série de perguntas descabidas sobre sua sexualidade. Isso porque, Zé nunca casou e era cheio de delicadezas.

Sua implicância com o rapaz não foi muito além porque, mesmo sendo achincalhado e chamado, às escondidas, de Zé Mulher por alguns, era ele muito querido pela comunidade. E isso se dava pelos relevantes serviços ali prestados no trato com doentes, no cuidado com os mortos, nas rezas, na organização da igreja em tempos de festas...

Para o senso comum, Zé era um rapaz caridoso e sem vícios: não bebia, não jogava, não fumava... Só fazia o bem.  Por isso, estrategicamente, o cabo não o incomodava tanto. Contudo, deixara bem claro no calor dos seus discursos que, se pegasse um cabra safado metido com sem-vergonhice com outro macho, matar não matava não, mas baixava-lhe as calças, dava-lhe uma surra de urtiga e o expulsava da cidade.

Naquele sábado, munido de uma lata de minhoca colhida no monturo da casa, um anzol de piaba e um litro de conhaque São João da Barra, seguiu o cabo cedinho para a sua apreciada pescaria no poço de Manezim. Como sempre, acompanhado do inseparável amigo de caçadas e pescarias, Zé de Tuca, jovem não muito afeito ao trabalho que, paradoxalmente, desfrutava demasiadamente da sua amizade.

À hora do almoço não chegou em casa. Havia algo errado. Jamais deixara de sentar à mesa às 11h, exceto quando estava em diligências ou viagens. Mesmo respirando mais aliviada quando ele se ausentava, a mulher preocupou-se com aquela quebra do seu protocolo militar. Esperou até duas horas da tarde e, movida pela certeza de que algo grave ocorrera, chamou uma vizinha e comadre para irem ao rio em busca do marido.

Encontraram-no com o amigo. Dormiam à sombra de uma baraúna, à beira do poço. Pelo visto, haviam se excedido na bebida e na amizade...

Silenciosamente, voltaram as duas para a cidade. Contudo, a esposa não perdera a oportunidade de registrar sua passagem por ali.

Às três horas, calçando apenas uma bota, entrou o cabo em casa com sua tradicional sisudez militar. Dirigiu-se à mesa e sentou-se à cabeceira, estranhando a presença da esposa, impassível, sentada à cabeceira extrema, olhando-o fixamente.

Fingindo ignorar a presença da mulher, levantou o pano que protegia, das moscas, o seu prato. E o que viu imobilizou o seu gesto no ar.

Não mais olhou para a esposa. Corou, inicialmente. Depois fugiu-lhe o sangue do rosto. Palpitação. Tremura. Olhos fixos no que acabara de ver. Não se sabe quanto tempo passou naquele transe diante do olhar fixo e perscrutador da mulher.

Em seguida, de olhos grudados no chão, levantou-se vagarosamente, dirigiu-se ao quarto e ali fechou-se até a manhã seguinte.

À mesa, ficou sua esposa por um longo tempo olhando, ora a porta atrás da qual o marido se encerrara, ora a bota que trouxera do rio e colocara no lugar do seu almoço.

O cabo Militão anoiteceu e não amanheceu em Mericó. Tomou o ônibus das 5  para a capital e de lá transferiu-se para a cidade de São Miguel, extremo oeste do Estado.

Mas do seu paradeiro, só se soube muito tempo depois. E o porquê do seu sumiço, em meio a uma campanha eleitoral garantida, permaneceu um segredo entre as duas comadres. Melhor dizendo, entre elas e Zé de Tuca, o amigo de pescarias.

Aldenir Dantas



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