PANDEMIA EM MERICÓ
Postado em23 May 2020 17 06 HISTORIAS DE MERICO

Imagine um cidadão, morador de um apartamento no quinto andar de um prédio, adquirido pelo Programa Minha Casa Minha Vida, encontrando no sofá da sala um elefante. Não um filhote, mas um adulto e bem nutrido elefante.

Penso que, num primeiro momento, seria ele tomado pelo medo. Em seguida, viriam as perguntas: Como isso veio parar aqui? Como vou tirar isso daqui. Algo semelhante aconteceu em Mericó nos primeiros anos da década de 1970.

Não se sabe de onde, nem porque, chegou à cidade um cidadão com sua família composta por três filhas: Maria da Luz, Maria da Paz, Maria da Glória e a mulher; bonita, devotada ao lar e, possivelmente, portadora de algum problema de saúde. Deduzia-se isso por, vez por outra, apresentar hematomas, arranhões ou marcas no rosto causados, segundo a própria, por quedas no banheiro, na escada, no quintal...

Filho de soldado e neto de delegado da polícia, se autoproclamava um homem temente a Deus, exemplo de patriotismo, honradez, cidadania, defensor da família, da tradição, da moral... Foi através dele que Mericó viu, pela primeira vez, marchando em suas ruas, um grupo da TFP com seus megafones e estandartes.

Aposentado pela FEB, batia no peito e orgulhava-se de ter pego em armas para defender a pátria amada. Só após sua morte, soube-se que apenas pegara nas armas, pois, ao chegar na Itália a guerra havia terminado.

Integradas à vida mericoense, suas filhas constituíam exemplo paradoxal:  Meticulosamente vestidas, bem comportadas, com cachos e fitas nos cabelos, pareciam bonecas nas idas à missa acompanhadas pelos pais.  Já nas festinhas e suarês elas deixavam as garotas mais espevitadas e moderninhas da cidade boquiabertas. O pai não permitia irem às festas sozinhas. A empregada Nicinha, espécie de escrava branca, as acompanhava. Contudo, para vingar-se do patrão pelo tratamento dele recebido, sempre dizia às meninas:

- Aproveitem, suas bestas, que a vida é uma só! Eu não tô é vendo nada!

Em meio a admiração, inveja e censuras, em pouco tempo as três Marias, com seus namoricos amiúdes e apimentados, deram muito o que falar. Chegavam a ser chamadas, às escondias, pelo primeiro nome acrescido, apenas, do conectivo.

Idolatrado por meia dúzia e respeitado e temido por muitos, em função do marketing que fazia de si próprio, aquele cidadão elegeu-se prefeito de Mericó, pela ARENA.

Sua primeira aquisição para o município foi uma difusora. Pessoalmente a colocava no ar na hora da Voz do Brasil. Virou rotina aquelas tentativas de imitar um galã de radionovela usando Tema de Lara como fundo musical:

- Está entrando no ar serviço de difusão municipal, órgão oficial pertencente a minha, à sua, à nossa Mericó: princesinha das ribeiras do Melão!

Durante uma hora, intercalando propagandas do Governo Federal como “Sugismundo”, “Esse é um país que vai pra frente”... falava de tudo. Mas falava, especialmente, mal dos seus adversários.

Surpreso com o poder daquele meio de comunicação, comprou um espaço quinzenal na rádio Brejuí de Currais Novos fazendo-se, assim, ouvir por todos os seus munícipes.

Muitos, de Mericó e de outras cidades, ouviam o seu programa (Conversa pra boi dormir) devido ao linguajar tosco e às ideias estapafúrdias, como transformar uma loca de pedra do riacho em cadeia para, nos períodos de inverno, a enchente fazer com os presos um servicinho que a lei não permitia.

Devido ao seu comportamento incomum, achava-se a população radicalmente dividida numa relação de amor ou ódio, quando surgiu na cidade uma doença desconhecida: a comichão.

Extremamente contagiosa, era transmitida pelo ar, pelo assento ou por qualquer objeto infectado. Seu único sintoma era um coceira insuportável que rapidamente se espalhava pelo corpo. O infectado não fazia outra coisa, senão tentar desesperadamente aplacar os incômodos com água morna, óleo de coco, manjericão, chá de camomila... chegando, na hora do desespero, a esfregar-se sem camisa numa parede áspera.  Falando assim, o leitor poderá, até, achar cômico, mas era um quadro triste de se ver, alguém acometido pelo comichão.

Diante dos primeiros casos, o chefe do executivo disse tratar-se de uma coceirinha que logo passaria. Contudo, em poucos dias o número de contaminados aumentou assustadoramente. Pressionado, ele abordou o tema pela difusora, reconhecendo a gravidade da epidemia e prescrevendo o remédio que, segundo o próprio, era tiro e queda.

A fórmula prescrita era uma mistura de cresóis e fenóis associados a hidrocarbonetos. A distribuição seria feita no muro da prefeitura. Bastava levar um litro vazio para trazê-lo pois, o órgão comprara alguns tambores a um primo distante do prefeito.

A princípio, as pessoas não entenderam o significado daquele palavreado. Mas a partir da compreensão, houve ampla rejeição ao uso da substância e vertiginosa queda na popularidade do prefeito.

Há muito atendendo mensalmente em Mericó, o único médico da cidade foi demitido por discordar da eficácia do que fora chamado de remédio. E, além de negar-se a prescrevê-lo, orientou as pessoas a não fazerem uso daquilo sob o risco de morrerem.

Através da difusora, o prefeito fez insinuações envolvendo a sexualidade do profissional da saúde exonerado e esclareceu a população:

- Aquele doutorzinho boçal, comprado pela oposição para desafiar a minha autoridade, disse que o meu remédio mata. Ainda disse que eu não tinha autoridade para passar remédio porque não sou formado. Estão vendo vocês? Eu tenho tanta autoridade que mandei ele pro olho da rua! E ao contrário do que disse, eu sou formado, sim: sou formado na gloriosa universidade da vida!

Contrariando suas expectativas, seu discurso não reverteu a resistência do povo. O passo seguinte foi pressioná-lo: professores da cidade foram transferidos para a zona rural, contratos temporários foram rescindidos e até as bodegas foram intimadas a não venderem a quem se colocasse publicamente contra ele. O descumprimento da regra implicaria perda de clientes de peso como o prefeito, a prefeitura, o secretariado e alguns vereadores.

A vida em Mericó nunca foi fácil, mas naqueles dias ficou muito mais difícil. Além do incômodo da patologia, muita gente passou a enfrentar dificuldades com as retaliações.

Numa das passagens pela feira livre, onde tinha mais gente se coçando do que comprando ou vendendo, ouviu ele muitas reclamações e até xingamentos, coisas que, até então, não experimentara como prefeito. E para demonstrar o seu descaso em relação à comichão, apertou mãos, abraçou doentes e acabou contraindo a doença.

Nicinha, que a cada dia aumentava sua oposição velada ao patrão, contou a Biluca* os detalhes da sua comichão e os planos para tratamento.

Na manhã seguinte, o motorista da prefeitura apanhou o chefe em casa e seguiram para Natal. Transcorrido menos de um quilômetro de estrada, atravessavam a primeira ponte quando um grupo de pessoas portando foices, enxadas, facões, facas de mesa... ocupou a cabeceira da ponte impedindo-lhes a passagem. O motorista gesticulou, acelerou, buzinou... mas o pessoal irredutível, se pôs a gritar:

- Tá coçando que dá dó! Vá tomar cresó, fenó!

Sem saída, o motorista engatou a marcha à ré, mas, da outra cabeceira da ponte surgiu novo grupo deixando-os cercados. Um que conseguia se fazer ouvir pela turba, colocou três infectados juntos com o prefeito na cabine da C10, que só cabia dois, em seguida entrou, bateu a porta e gritou:

- Sobe todo mundo que couber na carroceria! E toca pro muro da prefeitura, motorista, que vamos curar o prefeito!

Silencioso, pálido, trêmulo e se coçando, como os demais, em pouco tempo o chefe do executivo se viu diante dos tambores azuis do famigerado remédio, ainda intactos.

Cercado por uma dezena de cidadãos empunhando ferramentas de trabalho, o ilustre, mesmo estrebuchando, foi demoradamente banhado pela substância que tanto propagara.

Apesar do susto e dos incômodos da epidemia, apenas uma pessoa foi a óbito, o prefeito. Segundo o médico, por ele demitido, e o delegado, a Causa mortis foi comichão.

Como diziam os mericoenses, o vice prefeito, mesmo não sendo flor que se cheire, tratou de contratar médicos para atender a população e logo tudo voltou à normalidade. A tal substância foi aproveitada na limpeza de banheiros públicos.

No campo do conhecimento, o pouco saber em química é um dos meus pontos fracos. Por isso, de tanto falar na tal fórmula, recorri ao Google: Uma mistura de Cresóis e Fenóis associados a hidrocarbonetos (...) pode ser localizada numa marca conhecida como CREOLINA®.

* Biluca era o maior fofoqueiro de Mericó: SEXO, MENTIRAS E LATAS D´ÁGUA Postado em18 May 2014 00 37 HISTORIAS DE MERICO.

Aldenir Dantas




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