O MAU PAGADOR DE PROMESSAS (*)
Postado em05 Jul 2020 00 50 HISTORIAS DE MERICO

 
(Leonardo Villar e Glória Menezes 
em O PAGADOR DE PROMESSAS - 1962)


Após sofrer uma desilusão amorosa aos vinte anos, Abdias chegara aos trinta e três prometendo a si mesmo jamais se envolver seriamente com alguém e, muito menos, casar-se. Poderia a moça vir coberta de ouro e prata. O máximo que faria era se divertir. E isso não se atrevia a fazer com moça de bem, moça de família... com medo de um casamento forçado.

Mas, numa festa de padroeira da vizinha cidade de Jaçanã, esbarrou com uma jovem que o deixou com os olhos faiscando e as pernas bambas. Nem pensou e já foi chamando-a para dançar. Sentia-se inseguro como um adolescente em sua primeira investida amorosa e o pior aconteceu, ela não aceitou. Mas, não aceitou de uma forma tão delicada que a recusa deixou nele a certeza de que fora a contragosto. Se fosse um fora brusco, como outro qualquer, teria ele seguido adiante nas bebidas, nas danças... Mas, daquele jeito, sentiu-se preso, travado. E, enquanto a jovem permaneceu na festa, limitou-se ele a tirar uma conversa com um e com outro, sem perdê-la de vista.

Por mais duas vezes seus olhos voltaram a se encontrar. Foi o suficiente para ele guardar consigo a convicção de haver reciprocidade naquela explosão de sentimentos que sacudiram seu peito, sua cabeça... Na saída da festa, acompanhada pelo pai, ela olhou para ele mais uma vez e, com um sorriso mesclado de tristeza, abaixou a cabeça e se foi.

Durante os trinta minutos seguintes, em que ainda permaneceu na festa, Abdias obteve o máximo de informações acerca da jovem. E, com sua imagem imantada às telas da mente, retornou para Mericó decidido a abrir mão da promessa feita a si próprio, caso aquela jovem se propusesse a ter algo sério com ele.

Na tarde do dia seguinte, descia ele do cavalo à frente da casa da pretendida. Aproximou-se da porta e bateu palmas na esperança de que ela o atendesse. Caso contrário, pediria água e alguma informação. Ela apareceu. O choque entre olhares ratificou o sentimento mutuamente alimentado na noite anterior.

Baixando os olhos, ela falou quase balbuciando, como se estivesse dando continuidade a uma longa conversa entre os dois:

- Você não devia ter me procurado.

- Me diga que você não se agradou de mim, que vou e não volto mais.

- Não posso dizer. Seria mentira. Mentir é pecado. Mas eu não posso... Eu não posso.

- Por que não pode? Não é casada. Não é comprometida. Por que não pode?

- Não sou comprometida, mas fui prometida, ainda novinha... Posso falar nessas coisas, não! Coisas de Deus.

Sentados no alpendre, a conversa se estendeu por mais de uma hora sobre amenidades. Na hora da despedida, um olhar implorando para voltar cruzou com o outro dizendo quero que voltes.

- Se, por acaso, eu viajar por essas bandas, passo aqui para tomar um caneco d’água. Você se incomoda? Perguntou o jovem, de saída, subindo no cavalo.

- Mas isso é lá pergunta! Incomodo é nada! Respondeu a jovem com um misto de timidez e satisfação.

Para os dois, as semanas pareciam levar meses para passar e chegar o domingo quando, à tarde, ele, de passagem, parava na casa da jovem para tomar água. Melhor dizendo: ele fazia de conta que passava e ela fazia de conta que acreditava. Contudo, a moça mantinha-se irredutível naquela postura paradoxal. Tudo nela dizia sim às pretensões do jovem, principalmente, os olhos. Todavia, a resposta era não.

Na proporção em que o encantamento aumentava, as conversas avançavam em todas as direções. E, numa daquelas tardes, ela revelou o porquê de nunca haver namorado ninguém e de não poder fazê-lo.

Ainda em tenra idade fora acometida por grave doença. Desenganada pelo médico, esperava a morte, quando a mãe, numa última tentativa de salvá-la, prometeu a Santa Rita: Se sua filha Ducéu ficasse boa, dedicaria a vida à família e aos mais necessitados, na condição de eterna noiva espiritual de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Nessa condição chegara aos vinte e cinco anos. Vez por outra, aquilo a incomodava, mas logo passava. Estava viva, graças a um milagre, e isso era o mais importante.  Contudo, a partir daquela festa, a promessa passara a constituir pesado fardo em sua vida.  

No seu entendimento, a revelação iria afastá-los, por tirar qualquer possibilidade de irem além daquela amizade entremeada de encantos. Mas isso esteve longe de acontecer. E, após uma semana mal dormida, dedicada à busca de uma saída para aquela situação envolvendo santos, Abdias chegou a casa da jovem com um plano.

Para ficar ao seu lado, propunha-se a abrir mão de filhos, de contato com mulher, de qualquer coisa. Se os padres faziam isso, ele também poderia fazer.  Eles se casariam, mas ela permaneceria intocada, pura, na condição de noiva imaculada do santo. Só uma coisa para ele era impensável, não passar o resto dos seus dias ao seu lado.

Comovida com tamanha prova de devotamento, a jovem ficou em silêncio por um longo tempo, olhando para o chão. Enfim, considerou:

- Suas palavras fazem meu coração doer e, ao mesmo tempo, pular de alegria. Até parece que vai sair pela boca. Coloque a mão aqui. – falou, pegou a mão do jovem, colocou sobre seu peito e concluiu:

- Mas, onde já se viu, marido e mulher dormir em camas separadas?

- A gente dorme na mesma cama, então! Prometo que não toco em você.

- Tá vendo que um homem e mulher deitando junto toda a noite, vão resistir à tentação!
O jovem repensou a situação e propôs:

- Você tem razão. Eu não resistiria dormir encostado em você, sentido o calor do seu corpo... Tem homem que aguente isso não! Mas eu dou um jeito!

A sugestão foi aceita pela jovem e, passado algum tempo, os dois adentravam sua nova casa, em Mericó. Ela estava convicta de que o amor venceria os desafios da vida conjugal incomum que os esperava. E ele estava convicto de que encontraria uma maneira de desmanchar aquele noivado com o santo para ser feliz com sua amada e ter muitos filhos.  

Tudo estava meticulosamente organizado, fazendo jus aos dotes de Ducéu, moça sensível, caprichosa, trabalhadeira... Só a cama, que parecia igual a qualquer outra, na hora de dormirem, sofria uma transformação. Uma ranhura vertical no meio do espelho recebia uma prancha de madeira dividindo-a ao meio. Cada um ficava do seu lado, conforme proposto por Abdias para que o casamento pudesse acontecer.

Na qualidade de narrador onisciente, se fosse relatar aqui o vendaval de pensamentos conflitantes e sentimentos que sacudiram as noites daqueles recém casados, levaria tempo que essa historieta não comporta. Pulemos, portanto, esta parte.

Nem uma semana havia se passado e o marido, alegando incômodos com a divisória do leito que impedia a circulação do ar provocando calor, combinou com a esposa fazer nestas perfurações para minimizar o problema. Ela concordou.

- Nossa! Mas por esses buracos dá para passar até a minha mão, o meu braço! - Falou ela sorrindo, meio envergonhada.

- É! Mas não dá para passar uma pessoa. E isso é o que importa: cada um vai permanecer dormindo do seu lado, até que seu noivo desça aqui e lhe dê um fora, desmanchando o noivado.

- Brinque com coisa santa, não!

Os dias seguintes foram envoltos num clima inabitual. Pensamentos confusos, silêncios, olhares baixos, mesmo assim, cheios de brilhos quando se encontravam. Paradoxalmente havia, também, uma vontade contida de sorrir escondida no canto da boca...  

Passados dois meses estavam os dois na igreja. Ele, ansioso, esperando a mulher voltar do confessionário. Ela, retornando desanuviada.

- É assim, olhe: O padre tem autoridade para resolver essas coisas. Ele disse: Se for menino, quando for batizar, coloca o nome acrescido de Jesus. Assim: Se for botar o nome de Antônio, coloca Antônio de Jesus. E se for mulher, coloca o nome da sua santa protetora, Rita de Cássia.

- Vige, Maria! Mas assim tá é bom demais! – Respondeu o marido, faltando pouco para gritar e pular de alegria.

- E tem mais: Ele disse que a gente fosse viver do jeito que todo mundo vive, procurando ser caridoso e cuidando da família, que é assim que Nosso Senhor Jesus Cristo quer. E disse que minha mãe, lá no céu, vai ficar é feliz me vendo feliz.

E assim foi feito: procuraram praticar o que entendiam por caridade, cuidaram muito bem um do outro e cuidaram ainda melhor de Rita de Cássia, José de Jesus, Maria Rita, Rita de Jesus, Abdias de Jesus...

(*) O título "O MAU PAGADOR DE PROMESSAS" é uma homenagem ao ator  Leonardo Villar (recém falecido)  que tornou-se reconhecido internacionalmente ao interpretar o personagem Zé do Burro em O PAGADOR DE PROMESSAS   (1962) de Anselmo Duarte , o único filme brasileiro a receber a Palma de Ouro no Festival de Cannes, o qual foi também indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Fonte Wikipedia.


Aldenir Dantas


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