UMA HISTÓRIA EDIPIANA
Postado em02 Aug 2020 04 06 HISTORIAS DE MERICO







Enquanto o carro deslizava pela planície empoeirada, Edinho deleitava-se com o clima da Borborema Potiguar. A cada quilômetro percorrido, sentia o coração bater mais forte. Relembrando fatos vividos há trinta anos, às vezes, sorria; às vezes, balançava a cabeça em sinal de desaprovação. Chegara aos quarenta e cinco, mas, naquele momento, sentia-se como um adolescente.

Tudo começara em mil novecentos e setenta, ano de seca. Todavia, foi naqueles dias que chegou em Mericó a rosa que inebriaria a sua alma, a sua vida. Rose era seu nome. Viera de Cuité para ministrar aulas no curso primário, passando a morar em sua rua.

Nos seus catorze anos, tivera ensaios de namoricos. Mas a nova vizinha, com o triplo da sua idade, o fez fechar os olhos para qualquer garota. Era diferente. Parecia emersa de um romance do século XIX. Decorridos trinta anos, mantinham-se imunes à borracha do tempo: a doçura da sua voz, o brilho excessivo dos seus olhos e o misto de sobriedade e leveza que permeava cada gesto seu.

Não fora seu aluno. Contudo, pela proximidade das casas, logo se estabeleceu uma amizade entre Rose e sua mãe, seguidamente, estendida a ele. A partir dali, seu mundo passou a girar em torno da amiga que, a cada dia, o encantava mais.

Duas coisas causavam-lhe desconforto: o fato dela ser viúva e de ter um noivo no sul do país. Qualquer dia casaria, iria embora. Evitava pensar naquilo e aproveitava cada momento junto dela a quem, interiormente, chamava de deusa.

Era um leitor voraz, inteligente, inquieto e maduro em relação à idade. Assim, Rose, cuja companhia se resumia à mãe idosa, encontrara nele um amigo que lhe atenuava o vazio dos dias. A amizade rapidamente se fortaleceu, sendo comum vê-los, nos fins de semana, sentados à praça conversando, comprando na feira, assistindo à missa...

Incentivada pela própria mãe e pela do amigo, ia ela às festas em sua companhia. Ensinou-lhe a dançar. Ele diria: mais do que a dança, ela ensinara-lhe o caminho do paraíso. Era-lhe indescritível a sensação de envolvê-la em seus braços, enquanto bailavam ao som das baladas românticas.

Lembrou-se, e sorriu, da noite em que, embriagado com sua beleza, seu perfume, a música, a penumbra, a dança... deixou-se levar. Ela, aproximando os lábios do seu ouvido, o advertiu:

- Edinho, menino. Lembre-se de que não sou a sua namoradinha.

O que poderia constituir desconforto, pela forma como foi dito, serviu para estabelecer breve diálogo e abrir caminhos para outros.

- E lembre-se de que não sou menino.

- Está bem. Não é! Mas continuo não sendo a sua namoradinha.

- Está bem. Não é! Mas eu gostaria muito que fosse.

- Mas não sou. E vamos parar com a conversa, pra evitar machucados...

- Não diga isso! Nunca mais pisei nos seus pés! Já sei dançar.

- Não me refiro aos pés. Refiro-me ao coração.

Não tocaram mais no assunto, mas a atmosfera daquele momento o acompanhou nos dias seguintes. Sentiu-se confuso, com um vazio no estômago, sem fome, sem sono... Mas, resolveu que só iria à casa da amiga quando estivesse pronto para lhe falar daquelas coisas que o sufocavam. Como a coragem não o acudiu naturalmente, apelou para o álcool.  

Tinha porte de maioridade e, até, um tufo de barba embaixo do queixo. Além disso, naquele dia, vestiu-se e penteou-se de forma a parecer o mais adulto possível. Vencido o desconforto da sua primeira dose de aguardente, seguiu para a casa de Rose.

- Sentimos sua falta. Mamãe até perguntou se você estava bem. Vamos, entre! Chegou na hora certa: tem café no fogo e bolo feito há pouco. – Falou e seguiu para a cozinha acompanhada pelo jovem, que se manteve em silêncio.

- Há algo errado? Você está diferente... – Perguntou ela, após sentarem à mesa.

- Errado? Não! Não!

- Edinho, meu querido, você andou bebendo?

- Pode deixar comigo. Não ligue, não! Foi só um tiquinho, assim, pra esquentar... Deixa pra lá! Se eu lhe perguntar uma coisa, você me responde com toda a sinceridade? – Falou tropeçando nas palavras, devido ao nervosismo.

- Claro que sim!

- Eu tenho quinze anos. Pareço ter bem mais. Todo mundo diz. Logo estarei trabalhando. Se, digamos assim, eu gostasse muito de você e, digamos, você também gostasse muito de mim... Não digo esse gostar de amizade, mas um gostar de amor... Você sabe...

- Sim, sei.

- Então, você acha que a gente poderia se casar, ser feliz... essas coisas?

- Edinho, ser totalmente feliz, ninguém nunca consegue. O que a vida nos permite são momentos de felicidade. Eu e você temos aproveitado bem estes momentos... E é isso o que podemos fazer. Ir além deles, geraria infelicidades. Então, acho que não poderíamos.

- Mas se você gostasse muito, mas, muito mesmo, de mim?

- Exatamente por gostar muito de você, eu não faria isso. – Falou, fez uma pausa e continuou – Imagine que, em vez da sua mãe, seu pai tivesse se apaixonado e casado com dona Dalvina, que faz sequilhos. O que você acha?

- Dona Dalvina? Não! Não tinha nem cabimento... Porque diz isso?

- Meu querido rapazinho, quando você tiver a idade do seu pai, quarenta e cinco anos, eu terei setenta e cinco, a idade de dona Dalvina. Compreende, agora?

- Você me deixa confuso. Mas não acredito nisso...  Eu e você estamos fora desses limites impostos pelo tempo.

- Reconheço que estes limites inexistem quando conversamos, dançamos, brincamos... É como se o tempo do calendário não fizesse parte das nossas vidas. Mas não dá para fugir à realidade.

- Rose, e agora? O que é que eu faço? – Perguntou ele, quase em tom de súplica, após demorado silêncio.

- O que faremos? Esta é a pergunta. Aproveitemos os dias que nos restam, como aproveitamos os demais. Depois, partiremos para novas experiências. Você as terá muito mais do que eu. Nossa história é como uma bela ave: encanta, deslumbra, mas precisa seguir seu voo.

A vida dos dois seguiu sem alterações, exceto o encantamento de ambos que crescia a olhos vistos. As insinuações sobre a existência de algo além da amizade cresciam, mas foram dissipadas com chegada do fim do ano e, com este, do esperado noivo.

- Na próxima semana irei para Natal, passar as férias na casa do meu tio. – Falou Edinho enquanto jogava cartas com Rose e sua mãe.

-   Ah, meu menino! Quer dizer que não estará no casamento da sua amiga, nem na nossa saída? – Perguntou a senhora, em tom de queixa.

- Quer saber mesmo, dona Rosa? É que não gosto de despedidas. E gosto muito menos desse noivo que vem aí. Tenho um ciúme danado dele. Quem deveria se casar com Rose era eu. Isso sim! – Falou em tom de aparente brincadeira levando todos à uníssona gargalhada.

- Então, sem despedidas. Mas vou preparar um jantar especial para nós três.

O jantar foi, de fato, especial. Uma taça de vinho levou dona Rosa da mesa, diretamente, à cama. Abraçados, Rose e Edinho caminharam lentamente pelo longo corredor até a sala de estar. Ali, deixarem-se cair no sofá provocando barulho de madeira quebrando e risos.

Ela, apoiando a cabeça no ombro amigo, relembrou momentos que, para sempre, fariam parte das suas lembranças. Ele, segurando as lágrimas, prendia-se à crença de que algo aconteceria para mudar o rumo daquela história. Potencializadas pelo vinho, as emoções, que há muito andavam à flor da pele, venceram as resistências materializando-se em um longo beijo.

- Minha adorada Rose, não há como esconder: a gente se ama. Deixe-me ficar com você esta noite.

- Ah, meu querido! Isso mudaria o rumo da minha vida, da nossa história... Não daria mais para seguir adiante. Se você não compreender agora, um dia compreenderá.

- Compreendo. – Falou, ajoelhou-se, tomou as mãos da amiga entre as suas, as beijou e concluiu:

- Não importa quantas estrelas brilhem no meu Universo, você será sempre o meu Sol.

Édipo tornou-se professor, casou-se, teve filhos... Cidadão querido e respeitado em Mericó. Ciente da sua eterna paixão, a mulher, antes do casamento, esboçara algum ciúme. Depois, o tempo, a maturidade, o caráter e a dedicação do marido proporcionaram-lhe uma convivência pacifica com tais memórias.

Propositadamente, Rose não manteve correspondência com Mericó. Gerou queixas, mas, o amigo a compreendeu. Mesmo desejando que assim não fosse, julgou ser uma boa escolha.

Decorridas três décadas, após perder o marido, voltara ela a morar em Cuité. E ali estava ele, batendo à porta de um casarão antigo.  Uma jovem, de vassoura na mão, o atendeu. Ao identificar-se como amigo de Rose, foi conduzido à sala de estar onde ela lia aproveitando a luz de uma janela. Com um gesto, dispensou a jovem e, emocionado, caminhou em direção à amiga que, ao vê-lo, sobressaltou-se:

- Moço! Quem é o senhor e o que deseja?  

Ele parou, permaneceu calado, observando-a, com os olhos embaçados pelas lágrimas... Não sabia o que, nem como falar.

Ela não insistiu... Admirada, observava-o assimilando as emoções que o moviam.

Aproximando-se lentamente, ele ajoelhou-se e, tomando-lhe as mãos entre as suas, as beijou e disse:

-  Minha Rose, muitas estrelas brilharam no meu universo, mas você sempre foi o meu sol.

Em silêncio, se abraçaram demoradamente.

- Rose, você estava errada. Eu não sou meu pai. Você não é dona Dalvina.

- É possível, meu adorável amigo. Mas, mesmo errada, trilhamos o caminho certo.

- Não tenho muito do que me queixar. Importa que, agora, estou aqui.  

Dirigindo-se à estante, ela colocou um disco na vitrola e, ao retornar, o encontrou com a mão estendida convidando-a para dançar. Ela aquiesceu e, sorrindo, o advertiu:

- Lembre-se de que não sou sua namoradinha, nem sua esposa. – Falou e passaram a deslizar lentamente, como outrora, ao som de I'll be there de Jackson Five.  

De um canto oculto da sala, de olhos arregalados e queixo apoiado no cabo da vassoura, a jovem os observava.

Ele, sentindo-se de volta aos caminhos do paraíso, de olhos fechados, se pôs a recitar, traduzindo e parafraseando, a letra da música:  

Apenas chame meu nome, e estarei aqui
Estarei aqui para protegê-la,
Com um amor altruísta que te respeita
Apenas chame meu nome, e estarei aqui.”


Aldenir Dantas da Costa.


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