MERICÓ NOS TEMPOS DO CARIMBÓ
Postado em10 Aug 2020 20 18 HISTORIAS DE MERICO



Como em todas as cidades, havia, em Mericó, Maria de tudo e de todos. No entanto, conhecidas por, apenas, Dona Maria, havia poucas. A mais afamada delas fazia parte do pequeno grupo que, na primeira metade dos anos setenta, rompeu com o catolicismo convertendo-se à igreja reformada.

Aqueles desbravadores, pioneiros do evangelismo mericoense eram pentecostais, de costumes rígidos. Isso levou seus adeptos a significativas mudanças de hábitos.

Dona Maria tinha um ritmo acelerado, falava muito, ouvia pouco e gostava de refletir sobre a vida de todos identificando os erros e apontando o caminho certo. Mesmo mantendo seu ritmo frenético, fez elas alguns ajustes nas suas práticas: passando a saber o que era de Deus e o que era do inimigo, começou a usar sua energia no combate ao mal em sua casa e, principalmente, fora dela. Sua ação revolucionária começou pelo guarda-roupa, transformando em saias ou panos-de-chão as calças compridas e blusas sem mangas.

Coincidentemente, aquela foi a época em que o carimbó ocupou as paradas de sucesso nacionais com Eliana Pitman e Pinduca. Era só o que se ouvia no rádio, nas festinhas... Dona Maria, que antes gostava de fazer os serviços domésticos ouvindo rádio e cantando, tomara abuso àquele instrumento mundano. Preferia louvar ao Senhor, com hinos. E, potencializando a sua rejeição ao rádio estava lá o carimbó tocando a toda hora. Até aquele nome a deixava arrepiada. Era, sem dúvida, invenção da serpente que seduziu Eva.

Movida pelo desejo de ler a palavra de Deus, venceu, ela, a ideia autoalimentada de que “burro velho não aprende nada”, passando a estudar no Mobral. Graças à ânsia de aprender, seu progresso foi notável e rapidamente começou soletrar a bíblia aos que chegavam a sua casa.    

Na sua rua, morava uma irmã que andava pisando em ovos com ela. Isso, em função das suas mudanças e, principalmente, por viver querendo salvá-la a qualquer custo. Mas, naquela tardinha, faltou pó de café e, como era costume entre vizinhos, mandou o filho tomar um pouco emprestado na casa de dona Maria.

Júnior era o seu filho. Adolescente agitado, trabalhoso, vez por outra, exemplificado pelos pais. Na rua diziam “se peia desse jeito em menino ruim, esse daí já era santo”. A bem da verdade, o garoto não tinha uma índole má. Era apenas brincalhão, teimoso, irreverente, não deixava ninguém quieto e, de vez em quando, fazia umas traquinagens como ir tomar banho escondido no rio, roubar frutas nos quintais alheios...  

Naquela tardinha Dona Maria fazia comidas de milho. A cozinha estava revirada, palha por tudo quanto era canto, pia cheia de louça... Quem já fez uma boa “pamonhada” sabe que a trabalheira e a sujeira são grandes.  Estava ela, suada, estressada, cansada... mexendo um caldeirão de canjica quando o sobrinho adentrou a cozinha com um vidro na mão, dançando alegremente. Ao se aproximar dela, começou cantar enquanto estendia o vidro em sua direção:

- A bênção tia Maria / A bênção tio José / Minha mãe mandou buscar / Um pouquinho de café.

Sem parar com o mexido da panela, a tia colocou uma mão na cintura e, olhando-o de lado com cara de reprovação, descarregou nele o desconforto de quase uma hora à beira do fogo:

- Que maimota é essa, minino? Tome jeito de gente!

Ele, dançando e se remexendo cada vez mais próximo dela, respondeu de maneira bem explicada:

- Isso é carimbó, tia! É carimbó!

- Há, é? Apôis taqui o catimbó! - Falou ao mesmo tempo que acertou-lhe a cabeça com a colher de pau encharcada de canjica quente.

Ao ver que a tia não estava para brincadeiras, Júnior, tentando livrar-se das pancadas seguintes, deixou o vidro cair, correu e pulou a janela da sala. Ela, de colher na mão o acompanhou até a sala vociferando:

- Ah, seu fosse tua mãe, muleque, pra te dá uns corretivo! Nunstante deixava essas coisas de Satanás! Digo isso, mai a mãe é do mermo jeito... nem uví a palavra de Deus, qué!

- Quêde o café, Junho? – Perguntou a mãe vendo-o chegar de mãos vazias.

- Tinha não, mãe. – Respondeu, coçando a cabeça e fazendo careta.

- E o vrido?

- Eita, ficou lá! Isquici!

- Tu tais cum cara de qui tá mintino. Apois a mais tarde eu vou lá, tirá essa cunversa a limpo. Se tivé mintira no mei, tu sabe qui vai apanhá, né?

- Tô não, mãe! E é bom, mermo, a sinhora ir! Tia tá doidinha pra ver a sinhora.

-  E é? E pra quê?

- Disse qui tem um bucado de coisa de Deus pra falá pra sinhora. Só coisa boa, de glória, de amém, de salvação... Agora quela sabe lê muito, disse que vai lê a palavra de Deus para sinhora.  E disse até qui vai ensiná a sinhora a cantá uma ruma de hino de lovô!

- Disse mermo?

- E eu ia mintir, é mãe?

- Óia cuma fala cum sua mãe! Sou sua paricêra, não! Apois eu vou lá! S´eu num fô hoje, depois vou. Num sei quando vou, mais vou.

- Apôis vá, mermo, mãe!



Para abrir a janela de comentarios, clique sobre o titulo do texto ou sobre o link de um comentario:
Aldenir Dantas da Costa
08 Sep 2020 22 16
Muitíssimo obrigado, meu caro Jorge Braúna. Estamos juntos, nessa maravilha de planeta, que é o Jota!..rss
Jorge Braúna
28 Aug 2020 01 16
Sempre textos maravilhosos, caro Aldenir, que o sujeito fica atento do início ao fim!
Mericó já é uma novela. Parabéns!
Deixe um comentario
Seu nome
Comentarios