O IRMÃO DE JOSUÉ
Postado em16 Nov 2020 03 28 HISTORIAS DE MERICO





Ser funcionário público municipal de Mericó, nos anos 70, era um bom emprego. Não porque se ganhava bem, mas porque, fora dessa esfera, quase não havia atividades  formais na cidade capazes de garantir uma renda mínima e certa. Josué, além de trabalhar na prefeitura, fazia serviços extras e, por isso, vivia uma vida tranquila, morando em frente à praça, área nobre da cidade. Respeitado por todos, era homem paciente, de pouca conversa e adepto do jeito simples e diferente de falar do meio rural.

Numa sexta-feira, ao chegar para o almoço, encontrou ele, sentado à sombra da árvore que havia na frente da sua casa, um homem magro, de olhos grandes e desfigurado pela palidez. Ao vê-lo, o desconhecido levantou-se. Josué o saudou com um bom dia. O homem, tirando o chapéu em tom respeitoso, respondeu à saudação e falou:

- Se não for incomodar muito, eu queria falar com o senhor.

- Num é incômodo, não, home. Entre e se assente pra gente conversar melhor. Esse calor hoje tá cá mulinga!

Entraram, sentaram-se e, meio sem jeito, naquela que julgava uma casa de rico, o desconhecido, narrou o que o trouxera ali. Viera de Caboré, na Paraíba, embarcar num pau de arara que sairia naquele dia para o Sul. Mas a viajem fora adiada para o domingo. Após a longa jornada, estava ali, sem ter onde dormir, nem o que comer. Uns punhados de farinha e umas rapaduras que tinha em casa, deixara para a mulher e os filhos. Ele se viraria, mas, os meninos, coitados! Nem gostava de pensar como iriam passar até ele ganhar algum dinheiro e mandar pra casa. Sentado naquela praça, onde teria de passar dois dias, após bater-lhe uma agonia na cabeça, resolvera pedir-lhe ajuda para a comida. Dormir, dormiria em qualquer lugar. E concluiu a narrativa dizendo:

- Agora tem uma coisa que é pra dizer, mas tô mei sem jeito. É que é coisa estranha, difícil de se acreditar.

- Se acanhe não, home! Pode desembuchar!

O estranho abaixou a cabeça e silenciou por um tempo. Depois, olhando com os olhos embaçados nos olhos do interlocutor, falou pausadamente, quase sussurrando: - Eu sou seu irmão.

Sem dar conta dos sentimentos que dele se apoderaram, Josué mergulhou em longo silêncio, durante o qual perscrutou os olhos do desconhecido. Por fim, falou como quem fala para si mesmo:

- Meu irmão... Meu irmão... – Em seguida, como quem acorda de um transe, continuou: - Meu irmão, pois sossegue que não vai lhe faltar boia, nem tipoia enquanto tiver aqui.

- Não sei nem o que dizer... Só Deus Nosso Senhor Jesus Cristo! – Falou enquanto, com as mãos trêmulas, escondia o rosto disfarçando a emoção.

- A casa é pequena, mas na dispensa cabe uma rede. Tu dorme lá. E agora, espere aí que vou ver como anda a gororoba da patroa pra gente matar quem tá nos matando.

Orquestrado pela mulher, um crescente movimento de palpites e suspeitas em torno do forasteiro ganhou corpo entre vizinhos, amigos e familiares. Na sua imperturbável tranquilidade, o marido procurava aquietá-la e, por não obter resultados, frequentemente, a deixava falando sozinha.

- Pronto, Josa, hoje a sua mãe passou aqui e, de uma vez por todas, colocou em pratos limpos essa história. Esse homem não é seu irmão e ponto final! Depois de tudo que ela falou, não resta dúvida. Não tem como você ter um irmão com a idade dele. Vou lhe contar tintim por tintim o que ela disse, pra você deixar de ser enganado por esse daí, que pode, até, ser um criminoso, um malfazejo.

- Quero saber não, mulé. Deixa isso pra lá. Amanhã ele vai simbora e pronto!

Mesmo não demonstrando excessiva curiosidade em relação à vida do irmão (assim o chamava), ouviu dele o suficiente para saber: era um pai de família, trabalhador rural, nunca estendera a mão para pedir esmolas e, devido à grande seca, viu-se, pela primeira vez, obrigado a deixar a família para viajar vendido em buscar do sustento no Sul.

Após o almoço do domingo, o homem dirigiu-se à dispensa, de onde voltou trazendo o saco com os seus pertences amarrado por um nó.

- Tá na hora de ir. A senhora me desculpe por incomodar, mas Deus, nosso Senhor
Jesus Cristo há de pagar o que fez por mim. – Falou, dirigindo-se à dona da casa.

- Amém. Mas não incomodou nada não. – Respondeu ela, de cabeça abaixada pelo peso da consciência.

- E o senhor, quero dizer... – Tentou falar, mas foi interrompido pelo dono da casa:

- Não diga nada. Um irmão tem a obrigação de ajudar o outro. Ou não tem? – Falou, apanhou um embrulho em cima da mesa e continuou: - Aqui está uma rapadurinha, uma carninha assada e uma farinhazinha pra comida na viagem. Quero irmão meu passando fome por esse mei de mundo, não!

O viajante fez menção de agradecer, mas Josué, pôs fim à conversa:

- Agora simbora, simbora, home de Deus! Senão vai perder o carro!

Enquanto aguardavam a hora da partida, entabularam, entre silêncios, uma prosa amena. Iniciada a última chamada dos passageiros, apoiando a mão no ombro do irmão e fitando-o no rosto, falou Josué:

- Não duvido, de jeito nenhum, que tu é meu mano, mas, me diz: como diacho tu descobriu isso?

- Eu tava lá, sentado na praça. A cabeça parecia uma panela fervendo, um redemunho... Achei que ia ficar doido. Com fome, sem um tostão no bolso... e sem coragem de pedir ajuda a gente estranha... Foi aí que ouvi uma fala esquisita, assim, como um malassombro... Mas não era uma fala de fora. Era uma coisa vindo lá de dentro do meu juízo, que me disse: “aquele homem, daquela casa, é seu irmão”. Aí, eu nem pensei. Levantei e fui bater lá. – Concluiu com a voz embargada.

Josué estava, igualmente, tocado pela narrativa. Olhando aquele rosto abatido e pálido em contraste com o brilho excessivo dos olhos grandes e tristes, sentiu uma vontade que nunca sentira: abraçar aquele homem. Mas, controlou-se e, fitando-o com a ternura de irmão, enlaçou-o com um braço e, apertando-lhe firmemente a mão, falou, em tom de despedida, com uma voz que parecia saída dos recônditos da alma:

- O que você escutou de dentro da sua cabeça é verdade. Você é meu irmão. E estarei por aqui, quando voltar ou precisar do mano velho.  É pra isso que os mano servem... Né não?

- É... – O outro respondeu, tentou continuar, mas as palavras ficaram presas na garganta.

- Agora vai! Sobe nessa geringonça, que só falta tu, home! E tem aí uns trocado pro café na tua boia!

Sem olhar para trás, os dois seguiram seus caminhos. As distâncias que, gradativamente, os separavam tiveram seus espaços preenchidos pelas semeaduras que florescem e frutificam nos campos do invisível aos olhos.

Aldenir Dantas

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Aldenir Dantas da Costa
18 Nov 2020 23 48
Obrigado, minha cara Rejane. Parte dessa beleza tem a ver com você, a sua sensibilidade.
Rejane Mafalda
17 Nov 2020 10 00
Muito lindo! Adorei Aldenir.
Escreve com a alma.
Aldenir
16 Nov 2020 16 52
Obrigado, caro Jomar, pelo espaço, pela leitura, pelos comentários, sempre generosos.
Jomar Morais
16 Nov 2020 13 09
Belo e emocionante, poeta. Belo e miraculoso em seu poder de trazer à tona o amor que existe no coração de cada homem.
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