Postado em02 Feb 2021 03 23 A FÁBRICA

Aldenir Dantas
Sinto-me pouco à vontade ao usar estrangeirismos nas minhas narrativas. Contudo, encontro-me obrigado a fazê-lo, para manter-me fiel à realidade destes personagens sobre os quais pouco sei. Possivelmente, com o decorrer do tempo, descubra suas origens e, assim, compreenda o porquê de recorrerem tanto à língua inglesa. Será que são de uma ex-colônia britânica fortemente influenciada pela cultura portuguesa, ou o contrário? Não sei. Só não acredito que sejam brasileiros. Se forem, talvez pertençam a um futuro distante. Enfim, acompanhando o cotidiano dessa gente, quiçá encontremos pistas sobre sua nacionalidade e seu momento histórico. Comecemos, então.
Aquele foi um dia de glória para os middle-class. Foram agraciados com uma palestra de um coach do Terceiro Nível da Fábrica - TNF. Nunca estivera ali alguém de tamanha envergadura. Ao orgulho, misturava-se grande variedade de prazeres. O maior deles era o exibicionismo que, além de inspirar admiração na ralé, ratificava nesta a sua condição de inferioridade aguçando-lhe o distante sonho de ascensão social.
Em relação ao exibicionismo, as novas tecnologias muito contribuíram para potencializá-lo. Os salões de beleza, onde homens e mulheres submetiam-se a longas metamorfoses para eventos daquela natureza, passaram a oferecer a selfieroom. Ao sair da cadeira da esteticista, o cliente imergia neste espaço de onde saía com vasto material para alimentar as redes sociais. Sendo a middle-class detentora de suposto bom gosto, suas postagens tinham caráter modesto e espiritualizado, com frases do tipo “a verdadeira beleza vem da alma”. Afora estes e outros, havia o prazer de desfilar com aquelas peças de vestuário cujo valor dava para alimentar uma família da relé durante um ano.
Inebriada por múltiplos prazeres, lá estava ela, a middle-class, no pomposo salão verde-maduro, prestes a viver a experiência mais rica da sua existência: ver e ouvir um Terceiro Nível. Quando este surgiu no palco em meio a efeitos sonoros, chuva de pétalas e cascatas de luzes, todos ficaram de pé. Aplausos ecoaram acrescidos de gritos:
- Divo! Divo! Divo!
- Please, please, ladys e gentlemans! Sou apenas um TNF, há os Segundos e há os inenarráveis Primeiros. Contudo, reconheço: para chegar onde estou não foi fácil. Foi dura a jornada de abnegação, trabalho e dedicação integral à Fábrica, da qual vesti a camisa! – Falou, e fez breve pausa enquanto era ovacionado.
O barulho ensurdecedor cedia, ele fazia as últimas reverências antes de iniciar a sua fala quando, um grito no meio da plateia chamou a atenção de todos:
- Fora, maldito opressor!
Diante de tamanha afronta, a estrela titubeou no palco, suou, empalideceu. O público revoltado, por pouco, não fez justiça com as próprias mãos. O Pelotão da Cidadania agiu depressa: o agressor foi retirado e silenciado, dizem que, para sempre.
Recuperando, parcialmente, a serenidade o expositor retomou a palavra:
- A título de esclarecimento, cabe-me informar: este atentado não partiu da ralé, como de costume. Partiu de um de vocês que não seguiu os conselhos dos pais, da escola, nem da santa madre e acabou se transformando em um Indesejável(1). – Falou e entre suas falas dançou músicas de qualidade duvidosa, contou piadas para todos os gostos... Enfim, cumpriu o seu papel de peça do TNF.
Aproveitando-se do incidente causado pelo indesejável, o expositor semeou abundantemente em suas falas medo e repulsa àquele segmento. Dentre outras acusações, o apontou como capaz de destruir o que os presentes tinham de mais caro: a família, o trabalho, a ordem, as condições dignas de vida. Finda a sessão de amedrontamento, foram apresentadas as causas do problema e as medidas a serem adotadas para a sua solução.
Todos trabalhavam, os da ralé, inclusive. Portanto, o surgimento de indesejáveis entre todos os segmentos, até entre os Impolutos, não era fruto de desocupação. Era mau uso do tempo que lhes sobrava. Cabia aos presentes, defensores da ordem e do progresso, agirem para coibir a proliferação destes marginais. Com a aquiescência de todos, foram tomadas algumas medidas.
Os Arautos das Verdades iriam anunciar maciçamente uma forma moderna de comportamento para homens. Bombardeariam todos com notícias citando cientistas, estudiosos e pesquisas de opiniões públicas. Doravante, ser chique, estar na moda, ter bom gosto, portar-se como um middle-class seria, além de assistir aos Donos da Verdade às 20 horas, assistir, também, ao folhetim eletrônico das 21h e, em seguida, ao Show de Realidades. Rapidamente, com a ação dos Arautos e a participação dos presentes, formadores de opiniões, o tempo usado por alguns para pensar e inventar bobagens seria ocupado até adormecerem.
Não demorou a chegar a época em que os homens, ao invés de chegarem do bar tarde e se indisporem com as mulheres, adormeciam no sofá da sala. Seguidamente, a Fábrica disse ser coisa da ralé usar receptor de TV na sala. A partir de então, cada quarto ganhou um aparelho e eles passaram a adormecer em seus leitos.
Preocupada com o bem de todos e, diante do fato de muitos da ralé não possuírem aparelhos de TV, a Fábrica achou que seria ruim para eles ficarem sem acesso à cultura e à informação de qualidade. Um Primeiro Nível (PNF) mandou o Governo resolver, urgentemente, o problema. Este, agindo com a devida celeridade, pôs fim à pendência barateando o aparelho com subsídios e isenção de impostos, criando a linha de crédito TV-Família e distribuindo gratuitamente conversores digitais.
Para desalento da Fábrica, os indesejáveis continuaram aparecendo daqui, dali, de acolá... Como a maioria deles era composta por artistas, professores e filósofos, estes segmentos passaram a ser tratados, compulsoriamente, como indesejados. Possivelmente, muitas dores de cabeça decorreram desse acirramento mas, só com o passar do tempo teremos certeza.
Aldenir Dantas
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