O ROUBO DAS GALINHAS
Postado em01 Feb 2014 16 59 HISTORIAS DE MERICO



Mesmo naqueles tempos, a impressão que se tinha era a de que Mericó nascera antiga. Aqueles casarões altos, colados uns nos outros, de quartos escuros, corredores enormes, sala de jantar também enorme e cozinha ainda maior. E o muro, além ser enorme, tinha um par de casinhas na extremidade oposta à porta da cozinha: o mictório e o banheiro.

Claro que nem todas as casas de Mericó eram assim. Havia, também, as mais simples, menores, algumas de taipa, com quintais de varas trançadas e sem instalações sanitárias. Nestas, para as necessidades fisiológicas, usava-se o bacio ou o matagal próximo, especialmente, as fileiras de aveloz, muito comuns nos arredores da cidade.

Tico de Rubão, um rapazote de 13 anos, famoso pelas peraltices e consequentes sovas que levava do pai, morava num daqueles casarões antigos.

Contrariando a tradição de que criar galinha era coisa de mulher, Rubão tinha em seu quintal uma vasta criação destas aves, tamanha que chegava a vender ovos para a capital.  E devido à fama de valentão e à pouca prosa, pelo menos na sua presença, ninguém desdenhava da sua atividade.

Aproximando-se a Semana Santa, com a malhação do Judas e o tradicional roubo de galinhas, era comum encontrá-lo nas conversas das bodegas ou calçadas, batendo no peito e vangloriando-se por jamais alguem ter lhe roubado, sequer, uma da suas bem cuidadas aves.  

- Roubem, que eu quero ver, bando de vagabundos! Estou esperando com minha espingarda entupida de sal. Se alguém se meter a besta e aparecer por lá, dou-lhe um tiro de sal na bunda que a ferida vai levar anos pra cicatrizar.  

E chegada mais uma sexta-feira santa, ao entardecer, todos trataram de esconder suas galinhas: umas no banheiro, outras dentro de casa... Ninguém tinha dúvidas de que, naquela noite, haveria muitos espertalhões a espreita...

À boquinha da noite, na calçada, Tico brincava com alguns colegas enquanto a mãe proseava com a vizinha e Rubão, da janela da cozinha, vigiava o quintal armado com sua espingarda de soca.

- Hei, esperem aqui que vou tomar água!

- Cuidado pra não deixar o pote destampado, menino!

- Eu sei, mãe!

- Casa onde tem menino é fogo, comadre. Lá em Zeca Preto, o guarda da malária achou uma bota velha dentro do pote (1).

- Mas cá pra nós, comadre... não é falando não, mas aquele povo é muito seboso...

Passados alguns minutos, a conversa das comadres foi interrompida por  um grito vindo do corredor.

- Mãe! Tá me dando uma agonia!

Correram ao encontro do jovem a mãe, a vizinha e o pai, de espingarda na mão. Encontraram-no estendido sobre a cama, sem fala. Aflita, a mãe chamou-o pelo nome, sacudiu-o várias vezes, mas ele não respondeu.

- Homem, solte este diacho de espingarda e corra pra buscar Comadre Branca! Num ta vendo que o menino teve um ataque!

O pai saiu às pressas e a vizinhança, sabendo do ocorrido, encheu rapidamente a casa. Enquanto isso, os colegas de Tico, sorrateiramente, foram até o muro, escolheram duas galinhas bem gordas, torceram-lhe o pescoço ali mesmo, enfiaram-na em um saco de estopa e, como todas as atenções estavam voltadas para o quarto apinhado de gente, atravessaram, sem problemas, o corredor e ganharam a rua.

Tico, aos poucos, voltou ao normal e quando Dona Branca chegou teve de preocupar-se mais com a mãe desesperada, do que com o filho.  

Contudo, um imprevisto deixou o farsante muito contrariado: devido ao suposto problema de saúde, não obteve autorização para assistir a matança do Judas. Mas como não era de dar-se por vencido, esperou que os pais adormecessem, pulou uma das janelas e caiu na farra, sendo recebido como herói pelos comparsas.

Conhecedor da desobediência e das artimanhas do filho, pouco depois da meia noite o pai, no escuro, pé ante pé, foi ao seu quarto e, com cuidado para não acordá-lo, tateou o punho da sua rede para certificar-se de que não havia saído às escondidas.

- E então, homem, eu não disse que o menino tava dormindo! Falou a mulher quase sussurrando quando Rubão retornou ao quarto.

- É... O moleque tá dormindo feito uma pedra.

Prevendo a fiscalização do pai, Tico havia transportado para a sua rede o velho pilão da cozinha, não esquecendo de cobri-lo, cuidadosamente, com o lençol.

Aldenir Dantas

(1) Do conto a Traíra de Zeca Preto.


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