EDUARDO COUTINHO: O CINEASTA QUE DEU VIDA A UM “CABRA MARCADO PARA MORRER”
Postado em04 Mar 2014 14 54 IMPRESSÕES



                                                                                                                      Aldenir Dantas

Há um mês morreu o roteirista com formação em jornalismo, Eduardo Coutinho que, dentre outros, fez Cabra marcado para morrer, filme que levou 17 anos para concluir e merece ser visto por todo brasileiro, especialmente por aqueles de memória curta.

O grande sucesso de público e crítica desta obra transformou Coutinho em um divisor de águas na realização de documentários no Brasil, passando a exercer grande influência sobre novos e velhos cineastas e contribuindo significativamente para a valorização deste gênero cinematográfico. Prova irrefutável deste sucesso é o fato de que, segundo especialistas, em média um documentário atingia um público de 90 mil pessoas, enquanto Cabra marcado para morrer, no ano do seu lançamento, levou 600 mil espectadores às salas de projeção.

Suas filmagens tiveram início em fevereiro de 1964, quando um grupo de artistas ligados ao CPC, Centro Popular de Cultura, deslocou-se do Rio de Janeiro para o Nordeste, no intuito de fazer um filme reconstituindo a história do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado em 1962.

Um diferencial nesta obra foi a ausência de atores profissionais no elenco, composto pelos trabalhadores da região e, em especial, pela viúva de João Pedro Teixeira, Elizabeth Altina Teixeira, juntamente com os seus 11 filhos, representando os seus próprios papéis.

Com o golpe de 1964 as filmagens foram interrompidas, o equipamento apreendido, alguns membros da equipe, trabalhadores e líderes locais, dentre estes, a própria Elizabeth, foram presos.

Alguns setores da imprensa publicaram matérias fantasiosas associando o trabalho dos cinegrafistas a estratégias de comunistas para incitar e capacitar os camponeses para a luta armada. Mas não foi publicada a impunidade que se seguiu ao assassinato de João Pedro e, sobretudo, a armação montada na Assembleia Legislativa para um quinto suplente de deputado, envolvido no crime,  assumir uma vaga e, assim, usufruir da imunidade parlamentar. 

                                                                                                (Fotos do acervo www.bcc.org.br)                         (Cartaz do filme)

Ao sair da cadeia, Elizabeth, deixando os filhos sob os cuidados da família, fugiu para o Rio Grande do Norte, acompanhada apenas do filho mais novo e, cá chegando, assumiu uma nova identidade, permanecendo 17 anos sem nenhum contato com a família, nem tampouco com os companheiros de luta.

Em 1981, Eduardo Coutinho, acompanhado por apenas dois técnicos (fotografia e som), retornou a Pernambuco no intuito de localizar os remanescentes daqueles dias tenebrosos. Ao reencontrar boa parte dos integrantes do elenco, exibiu as imagens produzidas na época, salvas do confisco dos militares. A ausência mais sentida  nesta exibição foi a de Elizabeth, de quem não se tinha notícia desde a sua fuga em 1964.

No mesmo ano, a pequena equipe conseguiu localizar Elizabeth, morando com o seu filho na cidade de São Rafael, hoje submersa na barragem Armando Ribeiro. Com uma seqüência de depoimentos dela e dos filhos, localizados por Eduardo Coutinho, fecha-se o ciclo iniciado em 1964, ficando esclarecidos os fatos que antecederam e sucederam o assassinato de João Pedro Teixeira, especialmente no que diz respeito à dispersão e ao reencontro da sua numerosa família, espalhada por vários pontos do país.


(Torre da igreja da cidade submersa de São Rafael, RN)

Esta busca, da parte de Coutinho, seguida da realização do filme, lembra Pirandello, na sua obra Seis personagens à procura de um autor, com a diferença de que, neste caso, é o autor quem sai à procura dos personagens, todavia, o resultado não deixa de ser espantoso.

Pelas imagens gravadas em 1964, percebe-se a realização de um filme relativamente convencional, exceto, no tocante à utilização dos integrantes da própria trama como atores. Mesmo assim, a linguagem cinematográfica está dentro dos padrões vigentes, não havendo, portanto, quase nada de excepcional em termos de inovação. É na retomada das filmagens e, sobretudo, na costura entre estes dois tempos, que o filme se despoja do convencionalismo, sai do campo da ficção (mesmo sendo inspirada em fatos reais) e adentra o campo do documentário, adquirindo a grande força responsável por colocá-lo como referência no gênero.

Mesmo sendo um documentário, a obra não tem um caráter fechado, pragmático, sem possibilidades de outras leituras. Particularmente, identifico a possibilidade de se traçar analogias entre a trama e elementos religiosos, de duas maneiras: uma criada pelo cineasta, outra pela realidade dos protagonistas.

Uma história, onde um homem humilde é condenado à morte por ousar erguer a cabeça diante dos poderosos e lutar por justiça, naturalmente dialoga com a história de Jesus de Nazaré. Reforçando este dialogar, o próprio filho de João Pedro considera-o “um santo”. Somando-se a esse fato central, temos outros, a maioria proveniente da religiosidade popular acentuando esse paralelismo. Um deles é a presença da Galiléia, através de um engenho onde acontece uma série de enfrentamentos entre trabalhadores rurais e latifundiários. Outro, no campo da onomástica, refere-se aos ícones religiosos evocados pelo nome do líder assassinado: João, o apóstolo amado de Jesus, também,i martirizado pelo sistema e Pedro, na sua firmeza de pedra, levando o próprio Jesus a dizer: “Pedro, tu és pedra e sobre ti edificarei a minha igreja.” E não se entenda igreja, aqui, no seu sentido tradicional, mas no sentido de um ideal de justiça a ser construído em base sólida, para gerações futuras.

Outra coincidência relevante é o fato de João Pedro, por algum tempo, ter sobrevivido trabalhando em pedreiras, o que associa ainda mais sua imagem à resistência, à firmeza, à dureza. Há, contudo, no seu nome, uma dicotomia dando o equilíbrio pregado por Che Guevara, pois, se Pedro é pedra, o que caracterizava João, o apóstolo, era a ternura.


(Foto de Elizabeth com os filhos pouco tempo após o assassinato do marido)

O elemento religioso também está implícito nos nomes dos filhos do casal, a maioria deles bíblicos, conseqüência da religiosidade do pai evangélico. Paradoxalmente, a igreja evangélica surge no documentário punindo os seus membros envolvidos com questões políticas e servindo como fuga àqueles que, se desiludindo com o sistema, optaram por um estado de total alheamento ao mundo.

Provavelmente, no intuito de construir uma ponte entre estes dois martirizados, a cena inicial do filme se compõe de uma montanha em silhueta, no alto da qual se ergue um poste, lembrando uma cruz, elementos com forte poder evocatório da cena da crucificação, no momento do crepúsculo. Da escuridão, ao pé da colina, abrem-se portas e janelas e tem início a história deste novo injustiçado.

Mas é nas figuras humanas, nos seus rostos e nos seus depoimentos que se encontram as mais ricas possibilidades de leituras. Mesmo satisfazendo a curiosidade objetiva do espectador, o filme deixa muitas histórias nas entrelinhas. Esse fator assume proporções maiores quando se observa o depoimento dos filhos do casal.

A filha mais velha, não teve voz, mas os transtornos psicológicos sofridos após a morte do pai, que a levaram ao suicídio, falam por si só. Na expressão carregada, nas lágrimas, assim como nas palavras afetadas e cheias de revolta do filho jornalista há uma comovente e dolorosa carga de expressividade. Outra filha, cheia de filhos, no subúrbio de uma grande cidade chora as dificuldades da vida e a ausência de apoio familiar nos momentos de dificuldades. Outro filho, vigia de uma garagem, arredio, confessa a dificuldade de se relacionar com as pessoas e associa a origem deste problema a sua história de vida.

E assim se vai desfiando um rosário de mártires, cada uma com uma história, também, digna de um roteiro de cinema. E nesse conjunto de expressões, de palavras ditas e não ditas, o espectador se desvincula da verdade documentada e envereda pelas ilimitadas sendas da subjetividade subvertendo o pragmatismo da linguagem jornalística.

Trabalhadores presos, torturados, assassinados pelo regime militar, família destroçada, filhos estigmatizados, miséria, mentira, corrupção, etc. Todos estes ingredientes poderiam dá margens a muito sensacionalismo, pieguice, à construção de heróis e “pobres coitados” a ponto de inundar de lágrimas até os auditórios dos programas dominicais da TV Globo e do SBT. Todavia, Eduardo Coutinho optou por contar com respeito e sem demagogia a luta deste grupo de nordestinos pelos seus direitos.

O próprio Coutinho, em entrevista concedida a CINEMIN/1984, afirma que poderia ter transformado João Pedro e Elizabeth em heróis, mas não faz isso porque a sua intenção era “...recuperar a história da vida dessas pessoas, porque elas são representativas do povo brasileiro.” Para ele, “O mais difícil não é resolver o problema estético e sim manter uma relação honesta com as pessoas.”

Mesmo se não houvesse ocorrido o fatídico golpe de 64, o filme tinha um forte ingrediente capaz de chamar a atenção do público: a participação dos próprios protagonistas atuando na reconstrução da história do líder assassinado. Mas com a ocorrência do golpe, e o intervalo de 17 anos, somou a esse fato algo muito maior: o registro desse período funesto da nossa história, sintetizado na vida de um grupo de camponeses e, em especial, da família de João Pedro. Os sofrimentos, as alegrias, as tristezas, os temores e os traumas dos personagens ocupam o espaço destinado às encenações e com isso o filme assume uma força avassaladora, resultante da soma da realidade ímpar deste conjunto de vidas representativas dos massacrados e excluídos pela perversidade de um sistema.

Através dos depoimentos de Elizabeth pode-se constatar que, as leituras da fortaleza pétrea de Pedro aplicam-se, objetivamente, a ela. Se os seus filhos, em seus depoimentos, demonstram fortes seqüelas em conseqüência das dificuldades da vida, Elizabeth, não obstante o muito que sofreu, consegue manter viva a sua determinação de lutar e a sua serenidade. As marcas do seu rosto e, em especial, a tristeza nele estampada quando se refere aos filhos distantes, não impedem a manifestação da afabilidade, do sorriso e da cordialidade que a fizeram conquistar a amizade do povo simples da pequena cidade escolhida como refúgio.




(Dona Elizabeth quando foi encontrada em São Rafael - Foto do acervo - www.bcc.org.br)

Elizabeth, mesmo privada dos direitos de uma vida digna, da convivência do esposo e dos 11 filhos, manteve acesa a sua consciência social, pois, uma das suas últimas frases para a equipe de cinegrafistas foi: “Enquanto existir fome e salário de miséria, o povo tem que lutar...” E enquanto a equipe despedia-se, discursava ela apontando a “impossibilidade de haver democracia sem justiça social”. Com o desligado, ela ainda proferiu algumas palavras de ordem e, na ternura que nunca perdeu, acenou sorrindo para a equipe que partia.

Cabra marcada para morrer é um filme recomendado para qualquer um que goste de cinema, para os que desejam entender como se construiu esta sólida base a partir da qual se faz documentários no Brasil e, sobretudo, para aqueles que têm memória curta e  por “não saberem o que dizem” defendem regimes arbitrários.

Currais Novos, 02 de março de 2014.


CABRA MARCADO PARA MORRER -  FICHA TÉCNICA

Direção: Eduardo Coutinho. Fotografia: Edgar  Moura (1981) e Fernando Duarte (1964). Montagem: Eduardo Escorel. Música: Rogério Rossini. Som direto: Jorge Saldanha. Assistente de fotografia: Nonato Estrela. Produção: Produções Cinematográficas Mapa e Eduardo Coutinho. Produtor Executivo: Zelito Viana. Produtor associado: Vladimir Carvalho. Narração: Ferreira Gular, Tite de Lemos e Eduardo Coutinho. Longa-metragem, p & b e colorido. Duração: 2h. Ano: 1984.

FONTE DE PESQUISA:
CINEMIN, Revista de Cinema, nº 12, 1984.





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