A GARRAFADA MILAGROSA, AS CASCAS E AS CALÇAS DO DOUTOR RAIZ
Postado em03 May 2014 21 10 HISTORIAS DE MERICO



Mais um ano bom de inverno. Muita fartura. E aquele era um domingo de missa, de festa e procissão. Nunca se vira tanta gente na cidade: feirantes, visitantes e mericoenses ausentes retornando para o tradicional reencontro com familiares e amigos na festa da padroeira.

Atraídos pelas festividades, vendedores debrinquedos, bijuterias, miudezas e, até remédios, davam ao largo do mercado um colorido bonito de se ver e que, mais e mais,  reforçaava o espírito festivo dos mericoenses.

Em meio a estes, achava-se o Dr. Raiz com sua banca armada em frente o mercado e, sobre esta, catálogos com ilustrações de patologias chocantes, vidros contendo lombrigas e outras verminoses e sua garrafada milagrosa. Bastaram quinze minutos de fala através de uma difusora rouca, para formar-se expressiva e curiosa plateia ao seu redor.

- O senhor, a senhora e, principalmente esta formosa jovem, não iriam acreditar no que vou dizer se não estivessem diante das provas. - Falou, deteve-se diante de Rosinha, fez-lhe uma breve reverência e continuou. - A garrafada do Dr. Raiz, até hoje, não encontrou uma doença para não curar. Esse santo remédio foi criado pelo meu bisavô, que na sua juventude aventureira foi capturado pelos índios do Amazonas. Esperto que era, casou com uma índia, aprendeu os segredos do Pajé, conheceu todas as plantas medicinais da floresta e de lá fugiu, à meia noite de uma sexta feira, com a santa missão de trazer a saúde da floresta para o homem branco.

- Peraí, menino! Deixa eu vê esse remédio. - Falou Rosinha para Zé de Mariquinha, rapazote que a ajudava a carregar as compras e impacientava-se com o peso do saco na cabeça.

- E cura liseu, Dr. Raiz? - Gritou Zé de Tica, fazendo a plateia cair na gargalhada.

- Cura liseu, sim, meu jovem! Cura liseu, porque cura a indisposição para o trabalho. Olhem, se eu fosse dizer tudo o que tem nessa garrafada e as doenças que cura, ia passar o dia e entrar pela noite. Mas para os senhores e senhoras terem uma ideia do seu poder, vou citar apenas dois dos seus ingredientes: tem raiz de fedegoso que serve para icterícia, anemia, bronquite, complicações menstruais, dor de cabeça, dores intestinais, febre, doenças dos rins, queimaduras, sarampo, sarnas, prisão de ventre, reumatismo, inflamações, problemas de pele, feridas e machucados abertos. E tem copaíba que serve para problemas de pele, feridas, cabeça de prego, sarna, pano branco, eczema, aquela doença, úlceras, caspa, tosse, catarro no peito,  bronquite, tuberculose, gripe, gonorréia, diarréia,  hemorróidas, frieira, ferida de boca, artrite, sífilis, garganta inflamada, espinhas e  gases. Vejam que falei só de duas e essa garrafada tem mais de cem ervas testadas por grandes cientistas nos maiores laboratórios do Brasil e do estrangeiro. E digo mais: Se tomar e não fizer efeito, garanto o seu dinheiro de volta.  - Parou de falar e começou vender: uma aqui, outra ali, três por dez, outra acolá sempre com mais e mais promessas agregando valor ao produto.

- Pois, muito bem! Muito bem, senhoras e senhores! Escutem e me digam se não tenho razão: Acontece muito que a criança come, come e come. Come feijão, come carne, come rapadura, chupa manga... Come mais do que uma lima raul e a mãe não sabe pra onde vai toda aquela comida porque o menino não engorda, é amarelo, é fraco e sem disposição até pra estudar... Não acontece isso, minha senhora?  Os senhores já viram casos assim, ou não?  - Falou e, enquanto aguardava a confirmação dos presentes, deixou, mais uma vez, Rosinha pouco à vontade com seu olhar galanteador.

- Pois lá em casa tem um minino desse jeitim, seu Zé! O coitado, come, come e só cresce o bucho. - Comentou Zefa Fateira, que assistia a apresentação com o filho menor escanchado na cintura.

- Pois, eu explico minha senhora! São esses bichos aqui, esses vermes horríveis que crescem nos intestinos do seu filho e ficam lá, assim, de boca aberta, comendo tudo quanto é comida.úde a sua família. - Falava, mostrava os vidros aos presentes, prendendo a atenção do público e, voltando a deter-se em frente à Rosinha, avançou na ousadia. - Não é o caso desta jovem disposta, corada que só um botão de rosa, esbanjando perfume, saúde e beleza.

Um mal estar tomou conta de alguns presentes, especialmente da própria que, sem fazer alarde, falou baixinho, fazendo-se ouvir apenas pelo vendedor e pelos mais próximos:

- Eu sou uma mulher casada, seu Doutor.

Longe de recuar, protegendo a célula do microfone com a mão, ele aproximou-se mais dela e, insinuando-se, falou, aprofundando o mal estar dos presentes, alguns dos quais se afastaram prevendo confusão:

- A moça é casada. Eu também sou.  Mas como diz o ditado: sou casado, mas não sou casado... Entende?

- Vamo simbora, já, Zé! Agora tu num vai contá isso pra Zé meu marido, não, viu? Ele é capaz de vim aqui e fazê uma bestêra com esse desavergonhado do cão! - Falou e saiu às pressas.

- Pode deixá, dona Rosinha... Conto nada não!

Pedir segredo a Zé de Mariquinha era o mesmo que pedir chuva a Santo Antônio, ou marido a São José. Na primeira oportunidade, naquela mesma manhã, contou com direito a detalhes e floreios o comportamento desrespeitoso do ambulante.

Nascido e criado em Mericó, Zé de Maria teve infância e adolescência difíceis. Sem pai e com a mãe lavando roupa e fazendo o que aparecia de serviço para sustentar a casa, desde pequeno aprendera a lutar pela sobrevivência. Começara fazendo mandados em troca de uma moeda, um pão ou qualquer coisa que pudesse levar para casa. Sentia prazer ao passar às mãos da mãe o fruto do seu infante trabalho. As durezas da vida o levaram a ser, desde cedo, uma pessoa séria, calada, desconfiada, meio bicho assustado. Ainda frequentou a escola, mas, em vez de nela encontrar novas perspectivas de vida, deparou-se com um mundo hostil, de olhares atravessados e brincadeiras, muitas vezes, perversas. Por isso, ao aprender ler uma carta, escrever outra e fazer as quatro operações básicas da matemática, abandonou os estudos e caiu no trabalho cortando ou cambitando agave para os motores da região tirando, assim, um pouco do fardo que caía sobre as costas da mãe, já cansada e doente. Tinha 17 anos quando ela morreu. Vendo-se naquele mundo de dificuldades desprovido do único alento que a vida lhe dera, embarcou vendido num pau de arara para o Sul, onde permaneceu por dez anos, sem dar notícias. 

Três coisas foram decisivas durante a sua estadia naquelas terras: Inteligência acima do comum, disposição para o trabalho e ardente desejo de juntar dinheiro e voltar para o seu lugar. E assim aconteceu. Quando menos se esperava, estava Zé de volta, agora um homem feito, alto, esguio, de braços fortes, boa aparência e vestido no estilo dos lugares por onde andou: botas, chapéu, cinto lago, cabelo bem aparado e bigode bem talhado trazendo gravidade ao seu aspecto jovial. Andava sempre ensacado, pondo à mostra a fivela prateada e em alto relevo do cinto, causando admiração nos que o conheceram mal vestido e acabrunhado. "Era uma outra pessoa".  "Mudou da água para o vinho". Diziam. Mas, mero engano. Continuava o mesmo: calado, evitando as mesmas pessoas e os mesmos ambientes, antes, hostis. Não se sensibilizou com os agrados de alguns conterrâneos, nem tampouco com os suspiros das moças. Procurou os velhos parceiros de labuta no agave, investiu suas economias na compra de motores de beneficiamento e, em pouco tempo, comprava, beneficiava e vendia esse produto em grande escala.

Era no campo, entre os trabalhadores, agora seus empregados, que se sentia bem, comendo a fava com toucinho cozida na trempe, descansando sobre fardos de agave, tomando café e jogando sueca à boca da noite, nos alojamentos improvisados.

Neste meio encontrou Rosinha, filha de um bagaceiro, estendendo agave. Por muitas vezes a viu na labuta sem atentar para a sua jovialidade e beleza, pois, como as demais estendedoras, trabalhava com camisas de mangas longas, pano na cabeça, chapéu e calças compridas e grossas para proteger-se do sol e das reações alérgicas causadas pelo sumo do agave. Mas, em um dia de pagamento, ela foi com o pai, estabeleceu-se uma relação amena e agradável entre os dois, indícios dos sentimentos que os levariam ao altar.

Decidida, despachada, alegre, de linguajar brejeiro meio cantado e muito agradável de ouvir, assim era Rosinha. A própria anatomia do seu rosto lhe dava um ar de menina sempre sorridente fato que, possivelmente, confundiu o aventureiro Dr. Raiz.
 
Todo o esforço de Zé de Maria valera a pena. Era um cidadão respeitado, sentia grande prazer em labutar no campo com velhos e novos amigos e, em casa, deleitava-se com a presença amorosa e cativante daquela que pôs fim às investidas das casamenteiras oportunistas.

Naquela manhã, ao ouvir a conversa de Zé de Mariquinha, pensou por alguns segundos, pulou da cadeira, ajustou o chapéu à cabeça e, voltando-se para o jovem, falou já de saída:

- Apois, diga à mulher que fui ali. Volto Já!

- E acaba de chegar, para comprar a garrafada milagrosa, um distinto cidadão de bigodão! Quantas vai querer, meu senhor? - Falou o vendedor, mas teria ficado calado se tivesse percebido a cara assustada dos presentes.

- Quero garrafada não! Quero é que tire as calças, pra eu fazer um chá!

- O senhor é um cômico! è um humorista nato! Quer cascas, para fazer um chá! Mas já está tudo aqui dentro da garrafinha: cascas, folhas, sementes... Não importa o que esteja sentindo: A cura está aqui dentro.

- Quero casca não, sujeito! - Falou e arrancou da bota uma faca de doze polegadas, fazendo-a cintilar aos olhos do público. Alguns correram, outros se afastaram decididos a assistir o desfecho da cena. - Eu tô doido é pra fazer um servicinho em um caba safado, desrespeitador de mulher casada... E tô mandando é tirar as calças, mesmo!

Ágil como um gato, o doutor deu uma cambalhota, com um chute virou a mesa para o lado do desafiante e desapareceu mergulhando entre as pernas do que restava da plateia. Controlado por amigos para não desgraçar a vida por causa de um ato impensado, Zé, nervoso, arrumava a faca na bainha, quando dois dos seus mais dispostos trabalhadores colocaram-se à disposição:

- Cumpade Zé, se o sinhô quisé, a gente vai buscá esse caba safado onde ele tivé!   

- Deixem esse miserável ir embora e vamo cuidá da vida.

Em meio a um cenário de lombrigas espalhadas pelo chão, garrafas quebradas e mesa de pernas pro ar, sobraram comentários e gracejos.

- Eita qui o doutô da raiz correu que nem bala pegava... Chega o pezin batia na bunda!
 
- Também, cumade Zefa, se num corre, cum perdão da má palavra, o semvergonho tinha ficado era sem a raiz do fedegoso.


Aldenir Dantas

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