O TESOURO E A TESOURA DE TICO DE RUBÃO
Postado em14 Jun 2014 17 43 HISTORIAS DE MERICO

Diziam em Mericó que, se peia desse jeito a ruindade, Tico de Rubão eseria um santo. De fato, parecia que os castigos aplicados pelo pai só aguçavam o desregramento do filho, um rapazote de dezesseis anos, ensaiando os primeiros namoros, mas a cada dia mais trabalhoso. Sua última peripécia fora furtar ovos das galinhas do pai para vender e beber com os amigos.

Sem água encanada nas casas, Tico e outros meninos costumavam tomar banho no rio para ir à escola. Naquela manhã, estava ele sozinho no poço da passagem, quando se pôs a olhar mais demoradamente para Coquinha de dona Alzira ajudando a mãe na lavagem de roupa sobre o lajedo, à margem oposta do poço.

Olhando mais e mais, passou ele a enxergar na menina detalhes que nunca vira. Seu vestido de tecido barato, desbotado, de decote reto e saia pregueada presa entre os joelhos era de uma graça singular, enaltecendo-lhe as linhas do corpo e deixando à mostra as pernas firmes e bem torneadas. Seus cabelos desalinhados, presos em um cocó e com algumas madeixas soltas afogueando-se ao sol prenderam tanto o seu olhar que, por pouco, não lhe deixaram tonto. Braços delgados, mãos de dedos longos, finos, movendo-se freneticamente em meio aos brancos tufos de espuma. Rosto salpicado de água, sol, luz, prata, ouro... Salpicado de súbita beleza recém caída do céu sobre a Coquinha que por tanto tempo lhe passara despercebida na escola, na rua.

Percebendo-se observada, a jovem esboçou um sorriso tímido e baixou a cabeça.  Seguindo um impulso, ele desapareceu nas águas reaparecendo há poucos centímetros do lajedo onde estava a moça. Sentia-se desorientado. O máximo que conseguiu foi esboçar um sorriso. Ela ergueu a cabeça e, meio sem jeito, o retribuiu.

- Vai pra lá minino réi! - Falou docemente, com um brilho no olhar e um jeitinho na boca que o deslumbraram.  Mesmo sem entender muito dessas sutilezas, ele sentiu que ela, de fato, não o mandara embora.

- Vou nada, minina réia. Vem prá cá tu! - Falou com a voz trêmula e os olhos fixos nos dela, num diálogo intraduzível.

- Tais doido, é? Lá vem mãe, bichim... - Falou, olhou mais uma vez o rosto do jovem, como se o acariciasse com um terno olhar, baixou a cabeça e retomou o serviço enquanto a mãe retornava do quarador e ele, sumindo nas águas, reapareceu no ponto em que estava.

Doravante, a vida dos dois esteve permeada por sonhos, olhares, desejos, sorrisos, fugas... Mas numa tarde, na escola, a sintonia os levou a encontrarem-se sozinhos, no filtro. Os olhos de ambos pareciam querer se derramar das órbitas. Nenhum dos dois ousou falar. Inconscientemente, pareciam saber: nada do que dissessem se igualaria à emoção estampada no brilho do olhar. Ele, enchendo o seu copo, lhe ofereceu:

- Bebe logo você.

Ela sorveu alguns goles e devolveu-lhe o copo agradecendo, quase num sussurro.

Tomando o copo, ainda meio de água, ele bebeu lentamente, sem desviar o olhar dela.

- Bebendo o meu sobejo, minino réi?

- Pra casar...

Ela corou e, sem tirar-lhe o copo das mãos, trouxe-o a boca e ingeriu o resto do seu conteúdo. O copo vazio permaneceu nas mãos por alguns segundos enquanto os dedos se tocavam, os olhos cintilavam e o sistema circulatório ameaçava entrar em colapso de tão acelerado.

- Me lembro de tu toda hora, sabia? - Falou o jovem, olhando-a, quase em tom de súplica.

- Eu também. - Falou, virou-se rapidamente e seguiu pelo corredor. A cigarra havia tocado e, em alguns segundos uma turba de alunos sedentos invadiriam o local. 

Após aqueles momentos mágicos, viviam planejando encontros às escondidas, pois, ao sondar os pais citando o nome do jovem, a reação, além de imediata, foi a pior possível:

- O que? Num diga que esse aí anda se ingraçano pro seu lado e você tá dano o cabimento!?

- Não, pai. Eu não! Deus me livre!

- Pois é bom mermo. Purque se eu sonhar qui tu ta dano trela praquele desordeiro, dou-lhe uma surra tão grande qui até o diabo vai ter dó.

Chic Ferreiro era baixo, entroncado e, pelos muitos anos de lida com o ferro na bigorna, seus braços intimidavam qualquer pretendente da sua única filha, criada com zelo e destinada a um rapaz de boa família que lhe desse uma vida melhor do que aquela em meio a ferro velho, poeira, carvão. Contudo, esse zelo não o impedia de tratá-la com severidade e, até, violência. 

Quanto a sonhar que os dois andavam de namorico, nem precisou. Logo descobriu que se encontravam às escondidas.  Vexame, deveras constrangedor, o daquela tarde para Coquinha. Além de espancada violentamente pelo pai, foi conduzida até em casa, presa pela orelha. O jovem tentou interferir usando de um respeito que não lhe era comum, mas Chicó o descartou:

- Seu moleque safado, suma-se daqui, ca minha cunversa é cum seu pai.

O resultado dessa conversa Tico conhecia, mais uma surra. Mas, desde que se envolvera com Coquinha, passara a sentir-se um homem. E um homem não devia apanhar de outro, nem que este fosse seu pai. Estava disposto, pela primeira vez, a encarar Rubão.

Chegando em casa encontrou o pai acordado, sentado na espreguiçadeira da sala. Isso não era um bom sinal. Entrou, passou a tramela na porta de baixo e ia fechar a de cima quando o pai levantando-se, dirigiu-se a ele com a velha chibata de trás pernas, nas mãos.

- Muito bonito, seu muleque! Faz um rebuliço do cão, se mete com a fia dos outro e ainda vai encher o rabo de cana com os pareceiro.- Falava enquanto se aproximava do rapaz.

- Pai, eu gosto da moça. E daqui a um ano vou ser de maior e por isso num vou mais apanhar do sinhô, não! - Falou afastando-se para manter-se fora do iminente golpe.

- É muito desaforo, mermo! Vai tirar a catinga do mijo, seu coisa ruim...  - Falou e avançou para deferir-lhe um golpe, mas Tico numa rápida manobra, passou quase rente ao chão e colocou-se no lado extremo da sala, em posição de defesa.

- E num corra não! Você sabe qui quanto mais correr, mais apanha! - Falou e partiu em sua direção, cego de raiva.

Mais uma vez, Tico livrou-se do golpe, e, vendo que não conseguiria reverter a situação, pulou a porta da sala e, em poucos minutos, bateu à porta do amigo com quem há pouco estivera.

- Vou embora, Zé. A coisa aqui num dá mais pra mim não.

- Tais doido, home!

- Tou não. É que agora virei home de verdade. Mas tu vai me prometer duas coisa... Promete?

- Prometo. Mas deixa de maluquice, Tico!

- Primeiro diz a Coquinha que fui trabalhar e juntar dinheiro pra gente casar. E a outra: vou escrever pra tu e mandar dentro bilhete pra a ela e pra minha mãe. Tu faz isso, Zé?

- Faço, faço... Mas, entra, dorme aqui e amanhã tu se entende cum teu pai.

- Não. Vou pular o muro e dormir lá, pra de madrugada entrar e pegar umas roupas. Vai ter pau de arara nesses dias, pego um mucêgo num na subida da serra. - Disse isso e saiu.

Conforme planejado, fizera. Entre os viajantes do caminhão, conhecedores do comportamento violento de Rubão, não faltou quem lhe apadrinhasse na viagem.

Suas primeiras notícias foram de que estava trabalhando numa fazenda, mas não no eito, pois os patrões gostaram dele. Acharam-no espeto, inteligente e interessado pelo trabalho. 

Rubão, pesaroso com a fuga do filho, passou a repensar sua relação com este e a forma como o educara. Era outro homem, cabisbaixo, pensativo... Se pudesse, voltaria atrás, mas era tarde e temia não tornar a vê-lo. Penalizada com aquela tristeza, a mulher, assim que recebeu o bilhete do filho, além de chorar num misto de saudade e alegria, correu a procura do marido que, sentado num tronco de madeira, no muro, olhava o vai e vem das galinhas.

- Carta de Tico, Rubão.

Ensaiando um sorriso, ele sentou-se à mesa e acompanhou a leitura, ao fim da qual estava com os olhos embaçados de lágrimas.

Já Chicó, sentiu-se um grande vitorioso. Com a corrigenda na filha e a fuga do rapaz, ela não mais falou seu nome, tornou-se mais caseira e até as festas que ia com amigas, deixou de ir.

O presente de aniversário pela maioridade de Tico foi sua transferência do campo para a cidade. Mas isso ocorreu graças ao talento que descobrira na fazenda.  A mae, feliz, espalhou a notícia. O filho agora era empregado da Prefeitura. Em Mericó, esse era um dos melhores empregos que se podia ter. Indagada sobre o serviço do filho, não sabia explicar bem, apenas que tinha algo a ver com tesoura, tesouro, ou algo semelhante.

- Ah, cumade, deve sê tisoureiro. - Falou a vizinha. - Mas é um emprego bom de mais, mulé. Pra você tê ideia, a tisoureira da prefeitura daqui é a mulé do prefeito. É quem toma conta da dinheirama toda da prefeitura, faz os pagamento...

A conversa logo se espalhou e acabou chegando aos ouvidos de Chicó Ferreiro que, em prosa com o pai do jovem, comentou:

- Como diz o ditado, o mundo é o mió professô. Eu sou testemunha do trabai que o sinhô teve pra educá aquele minino qui,  por  infuluença dessa vagabundagem daqui, tava se perdeno.  E agora, ta aí, um homi feito, cum bom imprego.

- É, Chicó. Senti muita falta do muleque, mas hoje tô aliviado sabeno que virou um homem.

Naquele dia, a hora do almoço, Chicó comentou o assunto em família:

- Mas num é que o muleque de Rubão acabou virano um homi. Arrumou até emprego de tisoureiro, na prefeitura... - Falou olhando de soslaio para a filha perscrutando-lhe as reações.  Mas esta não demonstrou interesse no assunto, esboçou um sorriso e continuou sua refeição.

No mês da padroeira intensificava-se a vinda dos filhos ausentes de Mericó. Naquele ano, para alegria dos pais, Tico veio visitá-los. Além de bem vestido, trouxe um relógio Orient três coroas para o pai, que, por pouco não passou a andar torto com o seu peso e um potente gravador com um estoque de fitas K7 para ouvir com os amigos. Sempre lembrava das noites que, na calçada da igreja, ficavam procurando músicas num pequeno rádio de pilha.

Sua primeira visita, poucas horas após a chegada, foi a Chicó Ferreiro que, boquiaberto com o homenzarrão em que se transformara o moleque de outrora, ensaiou algumas desculpas enquanto limpava um tamborete para oferecer-lhe e gritava para o interior da casa:

- Zefa, Côca! Prepare aí um cafezim, qui tem visita. - Falou e voltando-se para o jovem tentou mais uma desculpa, mas foi interrompido por este que, estremeceu ao ouvir o nome da jovem.

- Seu Chicó, não vamos remoer coisa do tempo do ronca. Eu era muito presepeiro e o senhor tinha razão de querer sua filha longe de mim. - Falou, procurando controlar a ansiedade,  mas sempre de olho na porta de acesso ao corredor, na expectativa de ver surgir Coquinha.

Satisfeito por não sentir no jovem nenhum ressentimento, Chicó o elogiou em detrimento dos seus amigos que permaneceram na vagabundagem e ia perguntar sobre o seu trabalho na prefeitura quando este trouxe para si a conversa:

- Seu Chicó, o senhor sabe que hoje sou outra pessoa. E é essa outra pessoa que vem aqui, com todo o respeito do mundo, lhe pedir uma coisa.

- Mas, mi diga, o qui é qui um pobe coitado quiném eu tem pra lhe dá, homi?

- A coisa mais cara do mundo, seu Chicó. Um verdadeiro tesouro. Sua filha Maria do Socorro. E eu vim pedir permissão pra noivar com ela. Se consentir, a gente se casa daqui a um ano, na festa da padroeira.

- Faço o maió gosto. Mas essa minina é muito casêra, nunca nem falou nessas coisa e não é pra disanimá-lo não, mas despois qui você foi simbora, ela nuca nem tocou no vosso nome.

Afora o consentimento, Tico não ouviu mais o velho. Estava hipnotizado pela figura de Coquinha, em pé, à porta do corredor, olhando-o com aquele olhar de outrora, cujos detalhes trazia guardado na memória. Mas não era apenas o olhar que o desnorteava, era a mulher exuberante que tomara o lugar da menina e que as fotografias três por quatro enviadas nos bilhetes não lhe revelaram.  Sentiu que perdera, irremediavelmente, a menina encharcada de sol que o cativara, mas a mulher que desta brotara era ainda mais encantadora e o fazia sentir-se mais seguro em sua decisão de viver os dias que Deus lhe concedesse na terra, ao seu lado.

- Se alembra desse rapaiz, Côca?

- É, pai, me lembro. É Tico. - Falou esforçando-se para não explodir numa gargalhada diante da inocente pergunta do pai, não gritar de alegria e não jogar-se nos braços do namorado.

- Apois converse um poquim, queu vou vê se esse café sai. Parece qué de rosca!

Numa das barracas da festa, montada na praça, sob a admiração da sociedade Mericoense, as duas famílias ocuparam uma mesa. Com uma tradicional galinha assada, arrematada no leilão e regada à guaraná champangne, comemoraram o noivado dos filhos.

Olhando uma das árvores da praça, realçada pela luz da lua, Tico falou ao ouvido da noiva.

- Tô com uma vontade danada de amanhã arranjar uma tesoura e cortar uma algaroba dessas em formato de coração, em tua homenagem.

- Num invente, não, viu? Deixe esse povo besta pensar que tu mexe mesmo com a dinheirama da prefeitura. Pelo menos, até a gente se casar.

- É, mas esse povo besta também precisa saber que eu sou é um artista. Sou muito respeitado, viu? Todo mundo gosta das minhas plantas em forma de bicho. Me chamam até de rei da tesoura.

- Eu sei, minino réi. Eu sei. Bora me ensiná dançá.


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