A MANSÃO MAL ASSOMBRADA DE MERICÓ
Postado em13 Sep 2014 23 19 HISTORIAS DE MERICO



Era um mistério a forma como, em tão pouco tempo, Generoso Freire conseguira juntar tanto dinheiro. O certo é que, após muito trabalhar alugado um dia aqui, outro ali, sentindo-se sozinho no mundo com a morte da mãe, o jovem Geno, como era conhecido, fora trabalhar nos garimpos no Norte do país e, em menos de cinco anos, retornou para Mericó montado no dinheiro.

A origem de tão rápida ascensão econômica ninguém jamais soube. O que havia muito eram especulações, especialmente em torno desse seu tempo de garimpo naquelas terras sem dono e sem lei.

De volta à cidade natal, comprou uma casa, contratou uma serviçal e abriu um armazém para compra e venda de algodão e agave. Se chegou endinheirado, em pouco tempo sua riqueza aumentou com o comércio, fazendo todo tipo de negócio como comprar safra de algodão na folha e tudo que aparecia a preço de bolo, naqueles tempos difíceis. Até dinheiro a juros emprestava aos comerciantes locais.

Tinha pouco mais de trinta anos, mas pela forma como se vestia, falava e comportava-se aparentava uns cinquenta. Fora das atividades comerciais, quase não falava. Vivia só e não gostava de ostentar riqueza, pelo contrário, quem o via pela rua se não conhecesse julgava ser um mericoense pobre, como tantos outros. A única coisa que não podia ocultar era o possante caminhão, usado em seu comércio.

Aos poucos aquela personalidade integrou-se ao cotidiano de Mericó. Sem amigos, sem participar das rodas de conversas noturnas nas bodegas ou esquinas, sua rotina, fora do trabalho, era um passeio noturno, às vezes, seguido de uma visita à casa de Maria Dedinho, mulher solteira do beco das almas com quem se envolvera.

Sua figura passou a compor o cenário noturno da cidade, sempre usando um pesado capote, chapéu de feltro, de cabeça baixa, mãos nos bolsos, soltando baforadas de um cigarro brejeiro. Ao encontrar alguém, fosse conhecido, ou não, a saudação era a mesma: um "boa noite" do qual se ouvia, apenas, a última palavra.

Seu prazer maior, além de ganhar dinheiro era o gastronômico: sentia-se realizado quando a empregada lhe preparava um temperado pirão de mocotó, uma favada com toucinho, uma galinhada à cabidela com um arroz na graxa, uma suculenta buchada de bode... Sentia orgulho de comer bem e até do excesso de peso e do ventre saliente consequentes desta prática.

Nas raras conversas que tinha, ao se referir às mulheres, evidenciava verdadeira fobia em relação ao casamento, sempre associando-o ao iminente risco de traição, exploração, falência e até assassinato por mulheres interessadas em usufruir com outros do suado dinheiro do marido. Aliás, afora assuntos de negócios, esse era o único que o fazia soltar o verbo, não medindo palavras para associar à figura feminina todos os tipos de torpezas.

Ocorreu de, numa das suas viagens à capital, encantar-se com um dos casarões da Avenida Rio Branco. Era uma construção com um primeiro andar, varanda, sacada e uma bela escadaria externa. Pensou que, com tudo que juntara, bem que poderia viver numa casa semelhante àquela. Mas a ideia de viver sozinho e de envelhecer dependendo dos cuidados da empregada passou a incomodá-lo. Se, além da sua finada mãe, existisse no mundo uma mulher que merecesse a sua confiança, casaria. Poderia até haver, mas o difícil seria encontrar, pois eram quase todas iguais.

Voltou da capital remoendo essas ideias e buscando entres as moças do sítio que conhecia uma a quem pudesse propor namoro. Nem pensou nas da cidade, pois, se mulher para ele era um perigo natural, sendo da cidade, influenciada por rádio, livros e revistas esse perigo era potencializado.

Não tardou e lá estava ele frequentando a casa de Chicó Ferreira e de namoro com sua filha Amélia Joana. Moça bonita, reservada, mas firme nas suas convicções, dentre estas, casar, sair daquela vida de privações, morar na cidade e ajudar as cinco irmãs mais novas nos estudos. Não queria vê-las para sempre matando-se no pesado trabalho, em terras alheias.

A casa, uma réplica simplificada da original, começou ser construída ao lado do mercado. Era motivo de admiração para os mericoense que nunca viram uma construção de primeiro andar e cheia rebuscamentos. Paredes subiram ao andar superior, acompanhadas pelos vergalhões de ferro e pela escadaria espiralada. O deslumbramento com a construção não era só do povo, mas do próprio Generoso que sentia grande satisfação em inspecionar diariamente o trabalho do pedreiro, ouvindo-o sobre o andamento da obra. Até incluiu uma visita à construção, no seu rotineiro passeio noturno.

O namoro aproximava-se do noivado, a construção da casa avançava, mas Generoso ainda não conseguira livrar-se da sua gamofobia. Confiava em Amália, mas sempre com um pé atrás.

Certo dia, após o almoço, cochilava na espreguiçadeira ouvindo a rádio Brejuí, quando teve a atenção chamada para o anúncio de uma Professora Dalva, médium vidente e cartomante que descobria passado, presente e futuro, desmanchava feitiçaria, diagnosticava doenças e resolvia qualquer problema de amor. De passagem por Currais Novos, a célebre professora estava atendendo naquela cidade. No dia seguinte, logo cedo, dirigiu-se ele para a famosa capital da scheelita.

- Sabe dona professora, como num sou mais nenhum minino, cumeço a pensar numa pessoa pra cuidar de mim na velhice. Entende, né?

- Entendo. Se tem dinheiro, isso não é problema, meu filho: pague a uma empregada que também lhe sirva de enfermeira.

- Mas num é só isso, dona... Penso numa pessoa, mas qui num precise pagar, qui cuide da casa, de mim, que possa me dar até uns menino...

- Ah! Entendo. Quer tudo isso, mas sem ter de pagar... Então quer se casar! Mas qual é o problema?

- Eu tem até uma namorada, moçota bonitona, de famia pobe, mas honesta... Mas sou mei cismado... sabe?

- Sei, sim. Meu filho tem mesmo é medo de levar um par de chifres... É isso? E quer saber se a moça  lhe será fiel... Seja franco!

- Isso. É isso mesmo.

- Vou lhe dizer uma coisa: Meu filho, com essa conversa, bem que você mereceria ser corneado, mesmo. Mas a moça não vai fazer isso não. Tem moral para lhe ser fiel até a morte.

Sentindo firme convicção na palavra e, sobretudo, no olhar da professora, Generoso se deu por satisfeito, agradeceu efusivamente pela orientação e levantava-se para sair quando, a médium, em tom grave, falou-lhe, olhando nos olhos e pausadamente:

- Tem certeza de que não quer saber de mais nada?

- Acho qui não, dona. Mas se é importante, diga:

- Sente-se e dê-me a sua mão. - Falou, sentou, tomou a sua mão e fez longa pausa enquanto, de olhos cerrados, contraia os músculos da face, denotando enorme esforo. Sem abrir os olhos, perguntou: - Estás construindo algo grande, bonito... Talvez uma casa, um prédio...

- Sim, uma casa.

- Após o último tijolo, a última colher de cimento, a última pá de cal, você deixará esta terra e tudo que aqui ajuntou...

- O que?

- Isso mesmo. Té escrito. Será sua hora de prestar contas com o Pai Todo Poderoso...

Ele, de um puxão livrou-se das mãos da médium, saiu e entrou apressado no caminhão, estacionado à frente do consultório. Sem ousar duvidar da vidente, que demonstrara saber mesmo das coisas, antecipou o casamento e protelou a conclusão da casa diminuindo o ritmo dos serviços.

Durante meses sua vida não poderia ser melhor, vivendo ao lado de uma bela mulher, caprichosa, disposta, que cuidava muito bem da casa e dele, especialmente naquilo que mais gostava: uma bem caprichada refeição. Sentia-se um rei, até na barriga e na gordura que cresciam a olhos vistos de tanto comer seu prato predileto: um gorduroso pirão de corredor.

Convicto de que a esposa era de confiança e sentido necessidade de dividir a carga que lhe fora colocada às costas pela vidente, resolveu contar-lhe a fatídica previsão.

- Bangalô, pé de pato três vezes, Geno! E tu acha que essa mulé sabe mesmo das coisas que vão acontecer?

- Sabe sim, mulé. Sabe tanto qui adivinha os passado, os presente e os futuro. E deu prova disso quano fui lá.

- Apois, acabe cum isso hoje mesmo! Num quero morar em casa bonita viúva, de jeito nenhum!

Após ouvir a fala da mulher, ele estremeceu com o retorno imediato da velha fobia. Visualizou por um breve instante Amália viúva, morando na sua casa nova e gastando o seu dinheiro com outro. Ficou apavorado. Colocou as mãos na cabeça, fez um gesto de desespero e, voltando-se para a mulher, perguntou:

- Você qué mermo que eu pare cum a casa e a gente continue morano aqui? 

- Quero qui pare. E é hoje mermo.

Aquele dia era um sábado. À tardinha, na sala de estar, o pedreiro e o servente aguardavam o patrão que, no quarto, retirava do cofre o dinheiro para o pagamento da semana. Retornando, pagou a ambos, pediu café à esposa para os três e, após o primeiro gole, colocou a xícara no braço da cadeira e falou:

- Tenho outros sirviço pra vocês no armazém e numa casa dum sítio qui comprei por uma bagatela dum coitado que tá ino pro su. A casa é boa, mas tá caino os pedaço.

- E a casa do patrão? - Perguntou o pedreiro.

Ele fez longo silêncio, retomou a xícara de café, bebeu um gole, olhou para os trabalhadores e, com o apoio da mulher que se encontrava de pé à porta do corredor, tratou de encerrar o assunto:

- A casa fica como tá. Num boto mais um tijolo naquela geringonça.

Surpresos com tão inesperada decisão, os empregados se entreolhavam quando a xícara caiu das mãos do patrão espatifando-se e espalhando café pelo mosaico encerado.

- Me acuda, mulher! - Gritou contorcendo-se de dor.

Em menos de meia hora adentrou o hospital de Cuité. Tarde demais. O infarto fora fulminante.

O protótipo de mansão permaneceu inacabado por anos. O que prometia ser a residência mais bonita da região se transformou num esqueleto de tijolos com garras de ferro enferrujadas, cheia de entulhos. Até durante o dia evitava-se passar pela sua calçada. À noite, com a cidade às escuras após o desligamento do motor, várias pessoas afirmaram ter visto o vulto de um homem de capote, chapéu preto e cigarro aceso vagando entre os seus escombros, subindo e descendo a sua escadaria inacabada.

O medo do povo era tamanho que, só passava pelo largo do mercado à noite quem, além de negócio inadiável, tivesse muita coragem. Até que a prefeitura derrubou a morada do fantasma e em seu lugar construiu um conjunto de sanitários públicos.

Bem sabemos que sanitário público nunca foi referência de cuidado e limpeza. E naqueles tempos, em Mericó não havia água encanada, nem estes produtos modernos capazes de disfarçar os piores odores. Tinha, no máximo, creolina e sabão. Assim, aquele lugar logo tornou-se tão fétido e insalubre que nem a assombração resistiu: tomou outro rumo, nunca mais foi vista.


Aldenir Dantas
aldenir.d.costa@gmail.com

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