SOBRE FAZER O QUE SE GOSTA E GOSTAR DO QUE SE FAZ
Postado em01 Dec 2013 16 15 IMPRESSÕES

Mário Quintana disse que, se fosse um padre, nos seus sermões, citaria os poetas. Sempre que possível, mesmo não sendo padre, faço isso e, no meu entendimento, a razão desta escolha reside na sensibilidade e percepção aguçadas do Poeta e no seu poder de síntese.

Se os padres aderissem à idéia, Pessoa, Drummond e Quintana, talvez fossem os mais citados.  Contudo, não creio que os livros sagrados fossem banidos dos templos, pois, de Davi a Paulo de Tarso, as Sagradas Escrituras estão permeadas por poética de rara beleza, atingindo o seu ápice no Sermão da Montanha.

Nos meus sermões, Cora Coralina ocuparia o maior espaço. Além da beleza singular da sua poesia, encontro nela o vigor da jovialidade associado à solidez de uma sabedoria construída ao longo de quase um século de vida, vivida em meio às pedras dos Becos de Goiás e dos caminhos de uma mulher, ao mesmo tempo oitocentista e atemporal.

Trazendo para minha experiência pessoal, foi Cora que, através do poema abaixo, me auxiliou no paradoxo, tantas vezes questionado por amigos, de, tendo uma ligação com as artes, especialmente com a Literatura, trabalhar no Sistema Financeiro: 

PARA O MEU VISITANTE EDUARDO MELCHER FILHO

Ele me disse:
trabalho com um computador e não estou satisfeito.
Gostaria de ser pintor, compositor, poeta.
Escrever romances, fazer Arte.
Meu elemento de trabalho é por demais mecânico,
insensível, impessoal.

Amigo, disse-lhe em mensagem:
olha bem uma lixeira, um monte de lixo.
Não voltes o rosto enojado,
nem leves o lenço ao nariz ao cheiro acre
que te parece insuportável.
No lixo nauseante há uma vida,
muitas vidas
e na vida haverá sempre sentimento,
vibração e poesia.
Tudo que compõe o lixo veio da terra
e, depois de aproveitado,
usado, espremido e sugado,
volta para a terra.
Milhões de gérmens fazem ali uma química
poderosa e fecundante,
transformando em húmus a matéria orgânica,
repulsiva e rejeitada.
Ela vai fazer seu retorno a terra
num processo perene de transformação
e esta a devolverá a ti
no sabor perfumado de um sorvete de morangos.

Procura sempre a alma oculta do teu computador.
Ele é uma criação maravilhosa da inteligência humana.
Um dia tua sensibilidade a encontrará.
"
Coralina, Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha.
8a. ed. São Paulo: Global, 2001


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Aldenir Dantas
03 Dec 2013 03 25
Obrigado, caro Jomar. Mas como a poesia se faz na recepção, a poeticidade daqui é, sobretudo, sua.
Jomar Morais
01 Dec 2013 18 39
Caro Aldenir, é difícil dizer onde você é mais poético - se em versos ou em prosa. Excelente texto, meu amigo.
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