TESTE DE PATERNIDADE
Postado em20 Sep 2014 21 48 HISTORIAS DE MERICO




Sarita não era a jovem mais bela de Mericó. Mas tinha um encanto e uma sedução que a transformavam num foco de atenção do sexo oposto, dos adolescentes aos aventureiros de todas as idades.

Jamais se viu por ali outra mulher, naturalmente, tão atraente. Era de tal forma que podia está em roupas de banho tomando sol nas areias do rio em tempos de cheia, produzida para uma festa, ou em trajes de apagar fogo cuidando da casa, que chamava igualmente a atenção.

Certa vez, ao entrar, à boca da noite, na bodega de seu Felizardo para comprar algo, arrancou, ao sair, do professor Epaminondas um suspiro acrescido de uma inspirada observação:

- Esta jovem traz no corpo a beleza ímpar da mulher brasileira,  acrescida da indomável energia de uma dançarina espanhola e, para dar o equilíbrio, tem a meiga e aveludada voz de uma atriz francesa. Isso, meus senhores, é o que se pode chamar de uma combinação fatal!

- Eita que o professor não entende só das letras, entende também muito do bicho feme!

Mas o que Sarita tinha de encantadora, tinha de namoradeira. Com uma multidão de pretendentes, muito jovem envolvera-se com todos os playboys e grã finos da região e antes de completar vinte anos já era a moça mais falada da cidade.

E como se não bastasse estas relações que nunca iam além de um mês, espalhou-se na cidade, como rastilho de pólvora, a notícia de que andava de caso com o prefeito Tião Capitão. Devido à discrição exigida pelo cargo, os dois nunca foram vistos juntos em público, mas reforçando as suspeitas ela começou a trabalhar na prefeitura. O fato constituiu motivo de escândalo, mas acabaram se acostumando e ela continuou encantando a muitos e, vez por outra, envolvendo-se em um namorico. Se bem que, no linguajar daquele tempo, moça falada não namorava, chamegava.

Dentre os que se encantaram com Sarita estava o filho de seu Felizardo, recém-chegado da capital de onde voltara após terminar o colegial. Doravante ia ajudar o pai nos negócios e dar aulas no ginásio.  Era um jovem de boa índole, calmo, amante dos livros, comedido nas palavras e muito estranhamento causou, principalmente à família, ao ser visto conversando com aquela moça na praça.

Os encontros foram se tornando cada vez mais amiúde até um dia em que, para o desencanto das suas fãs, escândalo da sociedade mericoense e desgosto dos pais do rapaz, os dois, abraçados, desceram a rua em direção à casa da jovem. Estava formalizado um namoro cheio de obstáculos e oposições que se estendeu por quase um ano quando, certa noite, ao despedir-se da moça, ele perguntou?

- Sarinha, quer casar comigo?

- Você deve tá querendo brincar comigo, né?

- Falo sério.

- Meu Deus! Tem cabimento, isso? Você é tão bacana, mas às vezes parece que não percebe bem as coisas. Você sabe que eu...

- Pare! Eu sei, sim. Sei tudo de você. Sei como você é, o que fez, sei até do namorado que te levou embora e abandonou três dias depois na rodoviária de Campina Grande.

- Nossa! Isso só quem sabe é minha mãe. Eu tinha 16 anos. Meu pai morreu sem saber dessa história.

- Mesmo assim pergunto: Quer casar comigo e dar um novo rumo a sua vida?

- Você é tão bom. Gosto de você, de verdade, sabe? Você é a única pessoa que me faz sentir gente...  Mas não queria que sofresse por minha causa.

- Então, case-se comigo.

Casaram-se e viveram felizes por quase um ano. Depois vieram a rotina e, da parte dela, o descompromisso com a casa, o mau humor, o sentimento de prisão, opressão e a indiferença em relação à vida familiar. Mesmo atencioso e compreensivo, com o tempo o marido começou a cansar da nova Sarita que ocupava o lugar da sedutora mulher que desposara.

Atravessado o primeiro ano numa relação em crescente desmoronamento, uma gravidez deu novo rumo à história do casal. Ela passou a justificar o humor estragado e outras caturrices com o seu estado e ele a tudo ignorava, adornando o sonho de ser pai. Queria muito uma filha. Iria chamá-la Beatriz, a musa da Divina Comédia.

Após uma espera que parecia não ter fim, Beatriz chegou mais linda do que o pai sonhara. Para a mãe trouxe momentos de ternura, mesmo que entremeados de irritabilidade, inquietude e descontentamento até com o ar que lhe entrava pelas narinas. Para o pai, todos os problemas do mundo perdiam sentido diante dos olhos acesos e do sorriso da filha. Podia a mãe reclamar, esbravejar, sair de casa sem hora para voltar... Estando com a pequena Bia, nada o incomodava, de nada sentia falta.

Somando-se ao comportamento doentio da esposa, tornaram-se mais e mais frequentes as insinuações, mesmo que silenciosas, sobre o seu comportamento. Ele relevava atribuindo isso à oposição que sempre fizeram ao seu casamento. Mas, alguns amigos, daqueles que vale a pena ouvir, começaram a levantar questionamentos em torno da sua vida conjugal, a procura de espaços para alertá-lo diretamente sobre algo mais sério. Ele desconversava, dava uma ou outra justificativa, mas não deixava de computar tais sinalizações e de considerar a necessidade de uma conversa séria com a esposa. Por mais de uma vez chegara em casa decidido a chamá-la para conversar, mas a filha, de sorriso e braços abertos, chamando-o de papá e correndo ao seu encontro, levava-o de volta à estaca zero. E assim ia protelando semana após semana a sua decisão.
 
Além do tradicional mau humor, Sarita passara a demonstrar receio do marido, como se esperasse a qualquer hora uma reação sua a algo oculto. Assim, procurava evitá-lo e, qualquer conversa que ele entabulava, ela tratava de por um fim e achar uma desculpa para sair.

Naquele dia ela parecia mais ansiosa e inquieta que nos demais. Já passava das sete e ele, que sempre chegava do colégio antes das seis, ainda não chegara. O relógio da sala de jantar batia oito horas quando ele adentrou cabisbaixo, jogou a pasta de livros sobre o sofá, sentou-se à mesa e fixou os olhos nos desenhos da toalha. Ela, vendo aquele comportamento, teve seus receios aumentados abruptamente e, sem fazer barulho, deu meia-volta para sair, mas antes de fazê-lo ele a chamou:

- Sente aí, Sarita.

Ela sentou-se devagar e olhando, como ele, para as estampas da toalha, manteve-se silenciosa.

- Meu Deus... Mas desde que lhe conheci nunca pedi nada de mais, Sarita. Só pedi uma coisa, sinceridade. Durante todo esse tempo ameacei me indispor com meus pais e com meus amigos, por acreditar em você... E o que você me faz, Sarita? - Falou fez breve pausa, levantou o rosto e, olhando para a esposa, concluiu. - Como pode fazer isso comigo?

- Isso o que? -  Ainda, ousou perguntar, mas a pergunta não convenceu.

- Por favor, não me faça passar o constrangimento de relatar os detalhes sórdidos do seu comportamento por aí afora.

- Tá bom, tá bom. Eu fiz, eu faço mesmo... E, acredite, me dói o coração porque você é  bom marido, bom pai... Mas vou lhe ser franca de uma vez por todas: É que eu não presto, mesmo. Aliás, nunca prestei. Tenho inclinação ruim. Sempre ouvi isso do meu pai, dos sete anos até ele morrer. Minha avó olhava pra mim e balançava a cabeça com ar de reprovação. Eles tinham razão. Aqui dentro mora uma pessoa inclinada a tudo o que não presta. Até tentei mudar de vida. Acreditei que ia consegui junto com você que é bom. Mas essa coisa ruim aqui dentro é mais forte do que eu...  Uma médium disse que nunca vou ser feliz no amor porque tenho uma Pomba Gira. Mas não acredito nisso não. A ruindade é minha, mesmo...  Sou como vara que nasceu torta e vai morrer torta.  Você, um homem tão bom, merecia uma boa mulher... Sou sem futuro, mesmo, e gosto de homem sem futuro como eu. Homem ruim, safado, gabola, mulherengo... Essa força ruim que tenho aqui dentro me empurra pra esse tipo de gente e eu não consigo evitar... Às vezes chego a me sentir uma cadela vira-lata e bandoleira, basta olhar pra mim e estalar o dedo..

Os dois ficaram em silêncio por um bom tempo, olhando as gravuras da toalha de mesa. Ela enxugava algumas lágrimas quando ele, olhando-a com ares de repulsa, falou:

- Você sabe que precisa ir embora dessa casa, não é?

- Sei. Vou arrumar a mala agora mesmo.

- Não. Durma. Vá amanhã. Mas a minha filha você não leva.

- A menina não é sua filha. É de Tião. - Disse e saiu silenciosamente para o quarto, onde a filha dormia.

Ele encostando o rosto na mesa, enlaçou a cabeça com os braços, apertando-a como se desejasse esmagá-la. Chorou silenciosamente por um longo tempo e, apagando a luz, estirou-se na espreguiçadeira e ali permaneceu durante toda a noite.

Mal o sol nasceu e, silenciosamente, Sarita atravessou a sala conduzindo numa mão a sua mala e na outra a da menina que a acompanhava segurando em sua saia. Achou melhor que o marido estivesse dormindo. Evitaria maiores sofrimentos. Mas ele não dormia. Apenas mantinha os olhos fechados. Beatriz atrasava-se, como se quisesse ficar enquanto a mãe, com um gesto de cabeça, exortava-a a ir mais rápido. Quando a porta foi aberta, a menina não  acompanhou a mãe no passo que a levou à calçada. Parou, virou-se para o pai, e como se soubesse que ele estava acordado, falou em tom de súplica, quase chorando.

- Paim, num deixe ela me levar, não! Quero ficar aqui com você. - Suas ultimas palavras entrecortadas pelo choro, fizeram o pai abrir os olhos, igualmente chorosos. E estendendo os braços abertos em direção à menina e controlando-se para não desabar num sonoro pranto, falou:

- Vem! Paim não vai deixar nunca você sair daqui, filhinha da minha alma, do meu coração...

Ela correu e atirou-se em seus braços. Entre lágrimas, abraçaram-se efusivamente enquanto  ele experimentava uma felicidade exclusiva dos verdadeiros pais.

Igualmente com lagrimas escorrendo pelo rosto, Sarita, sem olhar para trás, soltou a maleta da filha na porta da sala e se foi.


Aldenir Dantas
aldenir.d.costa@gmail.com


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Aldenir Dantas
27 Sep 2014 10 38
Obrigado, minha cara Dulcimar.
De fato, ela tentou. E aquele que nunca tentou algo e não conseguiu, que atire a primeira pedra.
Abraço, minha amiga.
Dulcimar di Oliveira
26 Sep 2014 17 05
Aldenir meu amigo, lindo conto!
A Sarita na verdade, bem que tentou.
Abraço amigo, Dulcimar 😘
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