A FARRA DO BOI MANGAGÁ
Postado em27 Sep 2014 22 30 HISTORIAS DE MERICO

Bicho às vezes é como gente. Ou será o contrário? Não importa. Mas imaginemos uma família ou mesmo uma cidade, onde todos vivem em paz, fazendo as mesmas coisas e da mesma maneira, obedecendo e respeitando às normas, às autoridades... Aí aparece alguém subvertendo as regras, criando problemas para si, para os outros e para a ordem estabelecida que, se existe, é para que venha o progresso.  Pelo menos era o que ensinavam nas aulas de Educação Moral e Cívica. 

Na fazenda de Severino Avelino, isso aconteceu com Mangagá, um touro.  Ainda garrote, começou o bicho se comportar de maneira diferente dos demais da sua espécie.  Por ser um animal possante, escolheram-no para a campinadeira. Mas após passar pelas mãos dos mais experientes amansadores da região, chegou-se a conclusão de que não havia homem que lhe botasse uma canga no pescoço. O resultado das tentativas inúteis de amansá-lo foi o acirramento do seu comportamento arredio e da sua ferocidade. Da fazenda, apenas ao vaqueiro era permitido aproximar-se dele sem ser atacado. Dava-se o contrário, quando este se achegava e o acariciava, ele por pouco não dormia.

Devido às dificuldades e ao risco de se lidar com Mangagá, o dono resolveu vendê-lo para o abate. Iria lhe render um bom dinheiro, pois era uma rês grande e robusta. Contra a vontade do vaqueiro, muito apegado ao animal, fora ele levado mascarado pelo marchante comprador e dois ajudantes. Suaram muito a camisa até colocá-lo no curral do matadouro. 

Era um sábado. Mangagá passaria a noite ali junto com outro animal que seria abatido na madrugada de domingo, para feira de Mericó.  Ele seria morto na madrugada seguinte, para a feira de Cuité.

Há relatos de animais que, ao pressentirem a morte nos abatedouros, ficam inquietos e urram como se estivessem chorando. Mas como Mangagá, ninguém tinha visto por ali.  Ao ser colocado no curral, enfurecido, ele riscava o chão com as unhas, levantava o focinho como se identificasse no ar um cheiro desagradável e batia fortemente na porteira tentando derrubá-la. Já o seu parceiro de curral permanecia parado, resignado com a pena capital que o aguardava.

A vizinhança quase não dormiu naquela noite com os urros e choro do animal. Quando, na manhã seguinte, um ajudante foi limpar o abatedouro, reativou o cheiro do sangue e o bicho voltou a se debater tentando derrubar as paredes que o prendiam. Terminado o serviço, passando em frente à porteira, o zelador parou, olhou para o animal, bateu na madeira para irritá-lo ainda mais, fez uma careta e debochou:

- Amenhã se acaba tua brabeza, bicho fêi!  Vai virá manta de carne na feira de Cuitééééé! E eu vou cumer um pedaço do teu fiiiiiigo!  Huuuuuuuuu!          

Enquanto era insultado, Mangagá, de cabeça baixa, olhos fixos e orelhas apontadas na direção do rapaz, como se não quisesse perder nenhum detalhe das afrontas, afastava-se para trás, respirando ofegante. 

Ao soaram os últimos insultos, o animal que se achava no lado extremo da cerca, arranhou fortemente a terra com as patas dianteiras e, como um torpedo, disparou em direção à porteira. O jovem já havia se afastado alguns passos, quando ouviu o estrondo do animal chocando-se contra as barras de madeiras da cancela que, para o seu assombro, se abriu.

- Valei-me, Nossa Sinhora! - Gritou e correu desesperado com o boi em seu encalço.

Os vizinhos correram para as portas e janelas. A gritaria tomou conta do local. A diferença que separava o boi do rapaz em alguns segundos era tão pequena que ele sentia o bafo quente do animal em suas costas. Esperava a chifrada fatal quando tropeçou e esparramou-se no chão. Trincou os dentes, fechou os olhos e esperou o pior. Mas não aconteceu nada. O animal, vendo-o caído, desistiu da perseguição, deu meia volta e correu em outra direção.

Mas a solução de um problema foi o início de outro maior. Seguindo rua acima atento a tudo que se movia, o boi fez muita gente pular janela, subir em árvores e passar tramelas e traves nas portas até chegar à feira.

Vendo a movimentação de gente correndo, gritando e a confusão de coisas que eram as bancas de frutas, de roupas, miudezas e mangaios ocupando todo o largo do mercado, o boi enfureceu-se cada vez mais.  Deu umas carreiras em uns feirantes afoitos que tentaram tangê-lo com pedaços de pau e, como ninguém mais se atreveu a enfrentá-lo, passou a correr de um lado para outro revirando bancas, barracas, caixas de frutas, e tudo que encontrava pela frente.

Apareceram Tião Capitão e dois vaqueiros a cavalo com laços para prender o fujão. Mas não conseguiram, sequer, aproximar-se dele. Após fazer grande estardalhaço no local, Mangagá pegou uma transversal e desceu a rua principal varrendo tudo com os olhos a procura do que ou de quem atacar. Qualquer pessoa que via, ciscava o chão com a pata dianteira, baixava a cabeça e disparava em sua direção. Por sorte, sempre havia uma janela aberta, uma árvore, uma rota de fuga. 

Biluca foi um dos que, sem encontrar onde esconder-se, subiu num pé de fícus. Mesmo assim, o touro cabeceou repetidas vezes o tronco da árvore, fazendo estremecer toda a folhagem e tremer de medo e chamar por tudo quanto é santo o fofoqueiro mais famoso de Mericó.

Vendo o desespero do rapaz, os vaqueiros comandados por Tião Capitão procuraram desviar a atenção do boi que, olhando para os lados, afastou-se do local em busca de outro alvo.  Vendo-se a uma distância segura, Biluca desceu da árvore e correu rua abaixo.  Mas sua carreira chamou a atenção do animal que voltou a persegui-lo. A gritaria recomeçou: de um lado Biluca procurando uma porta ou janela aberta e do outro a torcida gritando "corre Biluca!" 

Enfim, a porta de cima da casa de Rubão estava aberta. Mas era daquelas portas cuja parte superior abre apenas a metade. Mesmo assim, do jeito que ia, ele pulou e enfiou-se para dentro da casa através da portinhola caindo desajeitadamente do outro lado. Ainda movido pelo medo, levantou-se rapidamente  e correu para o quintal onde o dono da casa cuidava das galinhas. Mas, mal atravessara o corredor, ouviu o estrondo da porta partindo-se com uma cabeçada do touro.

Com a aproximação dos cavaleiros, o animal deixou Biluca de lado,  desceu a rua em disparada e entrou no beco da almas com os perseguidores em seu encalço.  Quando os homens, a poucos metros do animal, chegaram ao beco, sob o comando de Tio Capitão, frearam os seus cavalos e fizeram silêncio.

- Se tem alguém qui sabe rezá, qui reze agora! - Disse Tião apontando para o animal que trotava no beco há poucos metros de uma criança, arrastando-se na calçada, sozinha, com uma mamadeira nas mãos. Era o filho de Maria Dedinho. Aproveitando-se de um descuido da mãe, ocupada nos afazeres domésticos, o menino encontrando a porta aberta, arrastou-se até a calçada.

Tião achou que, qualquer ação poderia irritar mais o animal e piorar a situação.  A poucos metros da criança,  o boi diminuiu a marcha e, como sempre fazia, abaixou a cabeça, mirou o alvo e seguiu em sua direção.

A essa altura já tinha gente de joelhos, com as mãos para o céu e contraindo promessas com vários santos.  Mas Mangagá, ao contrário do que ocorrera antes, não correu em direção à criança, mas foi se achegando cada vez mais devagar. A criança sorriu para ele e estendeu-lhe as mãos com a mamadeira vazia, como se estivesse oferecendo-a. O animal, com as narinas ofegantes quase rentes ao chão, olhava com seus olhos grandes e tristes de boi, ora para o rosto do menino, ora parra a mamadeira.  Aproximando-se anda mais, cheirou o bico de borracha ainda molhado de leite e o bebê, conversando com ele no seu linguajar incompreensível, tocou com a mão as suas narinas úmidas.

Após alguns segundos, sem tirar os olhos da criança, o animal deu alguns passou atrás, levantou a cabeça, olhou a multidão estática na entrada do beco, e retomando a corrida, saiu da cidade e adentrou no matagal dificultando ainda mais a sua captura.

Diante da comoção gerada pelo ocorrido, antes de retomar a perseguição, Tião Capitão colocou-se à frente da turba e falou:

- Eita boi véi macho! Um bicho desse num merece morrer na mão de homi ninhum. Merece ficá pra semente e só morrê no dia que Nosso Sinhô quiser. - Falou, fez uma pausa e dirigindo-se ao dono do boi que fazia parte do grupo, concluiu. -  Cumpade Nezim, eu lhe pago um bom preço pelo boi e ainda cubro as despesa. Mas quero esse bicho na minha fazenda. E enquanto eu for vivo, ninguém  vai incostá um dedo nele.

- E viva o dotô Tião Capitão! - Gritou do meio da turba  Zé Cachacinha que, naquele domingo, embebedara-se logo cedo.


Aldenir Dantas



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Rejane Medeiros
18 Oct 2014 18 28
So tantos os questionamentos que fazemos, no verdade, caro Aldenir? Teria o Boi Mangang pressentido que chegaria sua hora? Ou s em Meric , os animais detm essa percepo? Na dvida, cada vez menos como carne vermelha! De Boi Mangang fujo at a eleio, vai ter muito pra se contar, no meu caro Aldenir?
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