O SEGREDO DO FALECIDO SIMEÃO BATISTA
Postado em03 Oct 2014 18 49 HISTORIAS DE MERICO



No dia em que completou oitenta anos, Simeão Batista morreu.

Acomodado em um belo caixão lilás com tampo de vidro e alças douradas, ficou ele na sala de estar, sob olhares consternados de familiares e amigos, exposto à visitação dos mericoenses.

Não o incomodava o fato de haver morrido, assim como não o sensibilizava as caras de velório, os gestos e comentários contidos dos presentes. Morrer não era para ele um problema.

O problema fora morrer muito atrasado. Isso mesmo. No seu entendimento morrera com um atraso de quarenta anos. E isso o preocupava, pois poderia lhe trazer sérios transtornos. Quisera ir, sim, mas no tempo certo.

O velho relógio de parede marcava quatro horas e dez minutos, coincidentemente, eram quatro horas quando certo alvoroço tomou conta dos presentes. Entre frases curtas, suspiros e algumas lágrimas, alguns velhos conhecidos pegaram nas alças do seu caixão e o conduziram para o cemitério, acompanhados por significativo cortejo.

Usando pela primeira vez o terno riscado que ganhara da filha, enfeitado de flores e confortavelmente acomodado, nada tinha a reclamar da morte, exceto o seu atraso de quarenta anos. Mas como essa determinação viera lá de cima, o jeito era aceitar e torcer para que desse tudo certo do outro lado.

Na sua compreensão, corria tudo bem. As portas deste mundo ainda estavam abertas e só quando a mãe terra o acolhesse no seu seio, se abririam as portas do outro. E assim haveria de ser. Não porque acreditava que fosse, mas porque sabia que era.

Nesta certeza residiam os seus receios de chegar lá tão tarde. De cabelos brancos, rosto desfigurado, pele enrugada, voz entrecortada e passos trôpegos, como se sentiria perante Santina que regressara nos seus quarenta anos bem vividos, corada, robusta, cheia de vida, de curvas e com um brilho de estrelas no olhar? Seria por ela recebido, à porta da eternidade, como um decrépito vovô?

Estremecia de pavor diante desta possibilidade, ao ponto de acreditar-se com taquicardia, mesmo com o coração parado. Achava que aquilo não era justo, pois dentro dele havia algo que nunca envelhecera. Na mesma hora se autocensurava, pois, atribuir qualquer injustiça àquela situação seria um sacrilégio contra o Senhor da vida na sua infinita justiça.

Mas como não poderia abrir a tampa do caixão, mandar parar o cortejo, dizer que não queria mais ir, voltar para casa e virar um novo judeu errante, aquietou-se. Mas pensou o quanto seria engraçado fazer aquilo, especialmente pelo medo que causaria nos presentes.

Enfim, sorriu intimamente, e na falta do que fazer, resolveu aproveitar o longo percurso cheio de sacolejos até o campo santo para, pela última vez, rememorar os bons momentos da sua passagem pela vida.

O casamento e o nascimento dos filhos foram momentos sublimes, mas nenhum se igualara ao dia em que vira Santina descer de um carro de boi com seu vestido de saia pregueada, marrafa florida e um quê de boniteza daquele tipo que inibe o apetite de qualquer glutão, tira o sono de qualquer dorminhoco e provoca vazio no estômago. Sentira tudo isso naqueles dias. A moça viera de mudança, morar na sua rua. Ambos tinham quinze anos.

A partir daquele dia sua vida virou pelo avesso. Não tivera a menor dúvida, e assim confessou ao pai, de que não importava quanto tempo tivesse de esperar, nem o que precisasse fazer, mas iria casar com aquela menina. O pai orgulhou-se do filho homem, mas não levou a sério o seu sentimento. Contudo, passados cinco anos daquela primeira troca de olhares, estavam os dois dizendo sim um ao outro diante do sacerdote.

Mesmo passados sessenta e cinco anos, ainda sentia-se pouco à vontade em afirmar para si próprio que houvera, da parte de Santina, reciprocidade naquele encantamento à primeira vista. Mas, durante o tempo que estiveram juntos ela provara que sim. É que entre eles estabelecera-se uma relação que alguns tem dificuldade de compreender: ao contrário dos personagens das novelas, dos romances e das histórias de amor, quase não falavam nessas coisas. Não tinham esse costume, nem sentiam essa necessidade de ficar trocando juras pra lá e pra cá. Viviam o que sentiam e isso fora o suficiente para que suas vidas fossem completas, não obstante as dificuldades do dia a dia.

Assim, sem excessos, sem altos e baixos a vida a dois fora permeada pela serenidade, pela compreensão, pelo respeito mútuo e, sobretudo, por um inabalável sentimento de completude que os acompanhara por vinte anos, quando veio o inesperado golpe da separação com a morte da companheira.

A intensidade da perda foi maior porque ele, ingenuamente, esquecera de que o "formar uma só carne e um só corpo" pregado pelo padre era algo metafórico. E a culpa não fora do padre, eles é que viveram tão intensamente aquela união que as individualidades acabaram se perdendo, se misturando, se fundindo até o dia da brutal ruptura, tal qual doloroso amputar de metade viva.

O mundo que sempre fora um lugar ameno tornara-se de um cinza frio, quase insuportável. O sorriso aberto, os gestos largos e a prosa inteligente e espirituosa não mais encontraram guarida na sua viuvez. Não se transformou numa pessoa amarga, mas de pouca conversa, riso contido, introspectiva. Era como se estivesse sempre a olhar para algum lugar distante através de uma janela invisível, em busca de algo perdido.

Num gesto simbólico, a hora em que Santina exalou o último suspiro foi paralisada no relógio de parede da sala de estar, quatro horas e dez minutos. Foram quarenta anos de silêncio e de imobilidade mesclando-se ao zinabre e à ferrugem no velho Silco.

Ao retornar do sepultamento da esposa, mudou-se para um quartinho colado à cozinha que servira de dispensa. Fechou o quarto do casal e não mais permitiu que ninguém entrasse nele.  Jamais alguém viu, sequer, a porta ou janela daquele compartimento aberta. Apenas ele, vez por outra entrava lá, fechava-se e permanecia por horas a fio.

Inicialmente, pensaram se tratar de fraqueza da sua cabeça devido à perda traumática, mas o tempo passou, a vida voltou à relativa normalidade e o quarto permaneceu fechado, transformando-se num mist�rio gerador das mais variadas especulações.

Sabia que que houve até quem levantasse a hipótese de que, inconformado com a perda da mulher, mantivera insepulto e mumificado o seu corpo no quarto. Claro que essa ideia bizarra se limitou a alguns fãs dos filmes estrelados por Vincent Price e Cristopher Lee.

Afora os excessos, ao longo dos anos generalizou-se a crença na existência de algo naquele quarto relacionado à falecida Santina. Nem a família ousava questioná-lo sobre o assunto. Certa vez, a filha mais velha perguntou-lhe o porquê dele não acabar de uma vez por toda com aquele mistério. Sua resposta foi categórica:

- Nunca pedi nada a vocês. Mas hoje vou pedir: Esqueçam isso. Isso é coisa minha. Só minha. E se não for pedir muito, quando eu partir dessa para outra, não corram e escancarem as portas do meu quarto, comigo ainda no caixão. Deixem-me, pelo menos, chegar do outro lado.

Doravante ninguém mais tocou no assunto. A família parecia haver esquecido aquele cômodo. O povo era que nunca esquecia. A crença mais comum era a de que lá estava intocado, tudo o que a esposa deixara quando morreu: a cama, as roupas, os apetrechos de costura...  Supunham ainda que, quando ele trancava-se lá era para deitar-se e dormir no seu lado da cama, na esperança de sonhar com ela. Intimamente, sorria dessas suposições.

Ao emergir das suas lembranças já adentrava a sua nova moradia. Torcia para que se resolvesse logo tudo aquilo. Era tudo tão lento, tão lamentoso parecia até que o mundo ia acabar por que um velho de 80 anos morrera. E o pior foi, ao ser colocado no fundo da sepultura, ver no alto o semblante daqueles rostos. Se pudesse gritaria para alguém por um fim àquela situação vexatória. Tinha receios, sim, mas também tinha pressa de chegar do outro lado.

Enfim, começaram a atirar sobre seu caixão os tradicionais punhados de terra. Depois veio a pá do coveiro para adiantar o serviço. Doravante era esperar o fim, ouvindo o barulho da terra, dos pedregulhos e dos torrões de barro caindo sobre o esquife. Estava sereno. Era a porta de cá se fechando na medida em que a de lá se abria. Durou pouco e lá estava ela, a porta.

Acredito que haja muita curiosidade em saber o que aconteceu do outro lado. Mas, sinto muito por não satisfazê-la. Mesmo sabendo que o narrador pode ir a todos os lugares, preferi não acompanhar Simeão. Pode ser que essa porta se feche, eu não consiga mais voltar e, além de não ter ninguém por lá me esperando, a minha Santina está do lado de cá.

Ao contrário do que esperavam os mais curiosos, não bastou Simeão morrer para o mistério do quarto ser revelado. Numa demonstração de respeito ao pai, os filhos resolveram manter o cômodo fechado até a celebração da sua missa de trigésimo dia. Convidariam as pessoas para a celebração, fariam uma visita à cova, em seguida, serviriam um café e abririam o quarto pondo fim àquela longa historia.

A falta de entretenimento e lazer em Mericó levava as pessoas a transformar tudo em diversão: velório, terçoo, novena, enterro, etc. Por isso não é de se estranhar que, no período que antecedeu a missa do finado Simeão, a discussão sobre o misterioso quarto atiçou as conversas pelos bares, bodegas e esquinas. Houve até quem apostasse no que teria ou deixava de ter no tal aposento.

Quatro décadas de mistério foram responsáveis por transformar aquela missa na mais concorrida de todos os tempos. Nenhuma autoridade local, ao morrer, tivera tanta gente rezando por ela.

A casa estava com portas e janelas escancaradas entrando e saindo gente por todos os lados. Duas mesas grandes na sala de jantar repleta de bolos, salgados, doces, sucos e café permitiam aos convidados servirem-se à vontade. Passados os momentos iniciais do buffet, chegaram e colocaram-se ao redor da mesa, os filhos do falecido. E apés pedirem a atenção dos presentes, a mais velha falou:

- Sabemos da curiosidade de vocês sobre esse mistério do quarto de papai. Nós, seus filhos, estamos igualmente curiosos, pois, sabemos tanto quanto vocês. Este segredo ao longo desses quarenta anos deixou de ser nosso e passou a ser de toda a cidade. Por isso, para tirarmos de uma vez por toda essa história a limpo, com todo o respeito que temos pelo nosso pai, nos acompanhem, que iremos abrir suas portas e janelas.

A porta do quarto dava para a sala de estar. Como a casa era de esquina, havia uma janela para a calçada da rua principal e outra para a lateral. Muitos ficaram na sala, mas, não cabendo todos, outros correram para as janelas.

Primeiro entrou o filho mais velho que acendeu a luz e, em seguida, abriu a porta e as janelas aos demais.

Todos ficaram estupefatos. Os próprios filhos jamais imaginaram ver ali o que acabaram de ver.

Enquanto narrador, tenho pena por ser esta narrativa um conto e não uma novela, ou folhetim. Assim, deixaria as revelações seguintes para o próximo fasciculo, ou capítulo. Mas voltemos amos ao que interessa antes alguém que se chateie por ficar alongando-me, enquanto alguns já devem está roendo as unhas de curiosidade.

Ao contrário do que se imaginara o quarto não estava encoberto de poeira e teias de aranhas. Estava meticulosamente limpo e dele exalava um perfume de alfazema. Contudo, por mais que os olhos curiosos e as mentes fantasiosas tentassem se convencer, era difícil acreditar no que viam. Um mistério de quarenta anos que consistia no nada, no vazio.

Isso mesmo, o quarto estava vazio. Vazio como Simeão se sentira durante os longos anos que viveu sem a companhia da sua Santina.


Aldenir Dantas





Para abrir a janela de comentarios, clique sobre o titulo do texto ou sobre o link de um comentario:
Ramalho Medeiros da Costa
26 Nov 2014 16 59
Eita cara pra escrever bem! Invejo a maneira como Aldenir descreve com minúcias prendendo o leitor do começo ao fim de seus contos.
Aldenir
04 Oct 2014 00 54
Eu é que agradeço, minha cara Tonita Hipólito, por visitar a nossa terrinha. Volte sempre. Será sempre muito bem vinda.

Tonita Hipólito
03 Oct 2014 22 13
." E assim haveria de ser. Não porque acreditava que fosse, mas porque sabia que era."

Maravilha de frase...de efeito, forte e fora do comum. Obg,Aldenir Dantas, por esta deliciosa e surpreendente viagem as terras de Mericó.
Aldenir Dantas
03 Oct 2014 19 37
Mestre Jomar,

Nossos agradecimentos pelo incentivo e pela generosidade. Agradecimentos estendidos aos demais blogueiros e leitores do Planeta Jota que nos permitiram chegar hoje à 40º HISTÓRIA MAL CONTADA DE MERICÓ. Abraços, saúde e paz a todos.
Jomar Morais
03 Oct 2014 19 28
Mestre Aldenir, você se supera a cada conto. Maravilha!
Deixe um comentario
Seu nome
Comentarios