UM FICHA SUJA EM MERICÓ
Postado em09 Nov 2014 02 41 HISTORIAS DE MERICO


Naqueles tempos, Mericó era uma cidade de direita. Tanto que o último candidato da situação fora da Arena e o da oposição da Arena dois.

Mas antes de adentrar nesta história, peço licença aos leitores, especialmente aos defensores da língua mãe para me referir ao seu personagem principal usando a corruptela do seu nome. Creio que nestas narrativas a linguagem local deva ser contemplada apenas pelas falas dos personagens, mantendo-se o narrador fiel ao padrão culto da língua. Mas vou abrir mão desta crença por não conseguir imaginar ninguém, nem mesmo eu, tratando como Manoel Clemente a figura central deste conto.

Tenho certeza de que, se alguém chegasse a Mericó procurando por este nome ninguém saberia de quem se tratava, mas se procurasse por Mané Quelemente, não haveria quem não o identificasse. Daí a minha opção por tratá-lo assim.

Pela esperteza, popularidade e influência de Tião Capitão, Mané Quelemente acabou surpreendendo os especialistas políticos de Mericó  e entrando para a vida pública. Iniciando como vereador, fez tanto barulho e gerou tantas polêmicas na câmara, com seus discursos, desengonçados até para a gente simples de Mericó, que, numa jogada de mestre, Tião o indicou para prefeito.

Qualquer pessoa de bom senso diria ser uma causa perdida a sua candidatura contra a do filho de seu Felizardo, jovem de boa educação, recém-chegado da capital onde fora estudar. Mas uma indigesta mistura de favores, promessas, ameaças, ajuda na feira e discurso espalhafatoso virou o jogo com grande vantagem sobre o adversário.

Assim como a televisão e o cinema criam modismos, aquela campanha criou um clichê desprezível que, por muito perdurou, em tom de chacota. Tratava-se do que chamo aqui de memória de elástico: aquela que se retrai ou expande de acordo com a conveniência. Quando candidato, assim como na vida diária, ele usava e abusava dessa artimanha.

Para alguém que o questionava sobre uma promessa de campanha, ou alguma das suas ações nada louváveis como divisão irregular de terras, dúvidas com trabalhadores e outras, sua resposta genérica, acompanhada de um sorriso escondido por trás do bigode e de uma tapinha nas costas do interlocutor, era: "Isso é coisa do tempo do ronca, qui nem me alembro mais". "Vamo deixá de revirá baú e lutá pelo progresso de Mericó!'

Quando a acusação o era contra um adversário, sua memória não tinha limites levando-o a respostas como "E num é só isso não! Aquilo é de raça ruim. Ouvi dizê qui o bisavô dele era jagunço lá pras banda do brejo. Qui se pode isperá dum homi desse?"

Um ano de mandato foi o suficiente para Mané Quelemente mudar-se da casinha acanhada onde morava no sítio do sogro para uma boa casa na área nobre da cidade, em frente à praça. Com mais um ano comprou uma fazenda e, em seguida, uma cobiçada  caminhonete C10.

Por força da legislação partidária, integrava o Partido Democrático Social (PDS) quanto precisou ir à capital para uma audiência com o governador.

A mulher, que há muito se esmerava para livrar-se dos hábitos do sítio e deixar a casa de forma a não envergonhá-los perante as possíveis ilustres visitas, quando o marido anunciou a viagem, recomendou:

- Manel, aproveite e compre um ventilador aqui pra casa.

- Diacho de invenção é essa tua, mulé? Aqui em Mericó faz um frí da gota, tu ainda qué abanadô!

- Frio pra tu,  que tas acostumado! Mas homi, se vem os deputado e até governadô aqui, tu já imaginou que vergonha o prefeito num tê nem um ventiladô em casa?

Ele acabou concordando e, assim que saiu a audiência, dirigiu-se à Loja Sertaneja.

- Que tipo de ventilador o senhor deseja?

- Ô meu fí, daquele qui quando assopra sai assim, percurando as pessoa! - Falou imitando o movimento do ventilador para esquerda e para a direita.

Contendo o riso, o vendedor concluiu seu trabalho e encaminhou o cliente para a jovem responsável pelo fechamento da venda.

- O senhor prefere pagar a vista, ou à prestação?

- Bote aí nas prestação, minha fia!

Após algumas perguntas e o preenchimento do PI (Pedido de Informação) a moça pediu licença e ausentou-se por alguns minutos. Enquanto esteve só, sentado numa poltrona macia, acariciado pela brisa de um ventilador e tomando um cafezinho, cortesia da loja, admirou as coisas luxuosas do lugar e pensou cheio de satisfação no grande salto que dera na vida.

- Senhor, infelizmente a sua venda no crediário não será possível. - Falou a jovem, ao retornar com a papelada.

- E purque não, minha fia?

- Porque o senhor está no SPC.

- Oxi!  Mai num é qui tive inté medo! Pensei qui fosse coisa séria...

- Mas é, senhor.

- É não, fia de Deus. É não. Isso num é verdade. É mintira desse povim invejoso da oposição qui num aceita um home do povo, um pobe trbaiadô, na prefeitura.

- Mas, o fato é que o senhor está no SPC e a venda não pode ser feita.

- Pois vai sê feita, minha fia. E sabe pur que? Purque eu nunca tive nesse tal SPC. Ói, criatura de Deus, da Arena eu passei diretim pro PDS.  Eu tô é no PDS!

- Mas senhor... - A jovem tentou argumentar, mas foi interrompida pelo cliente.

- E num tem mais nem meno. Qué uma prova do qui digo? Acabo de vim duma reunião cum guvernadô, qui também é do meu partido.

A vendedora buscou o auxílio do gerente, mas o prefeito acabou levando a melhor: foi presenteado com um ventilador de luxo por de Radir Pereira, dono da loja e membro do seu partido, o PDS.


Aldenir Dantas


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