O OUTRO LADO DA DOR
Postado em01 Dec 2014 01 17 HISTORIAS DE MERICO


Pode alguém ter a falsa impressão de que em Mericó tudo é graça, tudo é pitoresco, tudo são amenidades. Mas, como em qualquer parte do mundo onde haja vida inteligente, há em Mericó momentos de alegria, de humor, de levezas, de tristezas e até de grandes pesares como o ocorrido naquele fatídico agosto.

Um misto de irresponsabilidade, necessidade, descaso dos poderes públicos e outros lastimáveis fatores resultantes da ignorância culminaram naqueles dias em terrível acidente automobilístico.

Era uma tarde de sábado. Retornando da feira de Santa Cruz, o jipe de Chico Balelê ao deslizar na estrada lamacenta sobrou na curva e precipitou-se na grota dos Puítas capotando incontáveis vezes até repousar desfigurado no leito pedregoso do rio. Morreram os cinco ocupantes. Desde os antigos tempos da cólera, Mericó nunca sofrera a dor de tamanha perda.

Doca Sapateiro, de um lado, cerrou as portas à freguesia, familiares e amigos, armou a rede no quarto onde trabalhava e entregue a um misto de dor, desespero e revolta, fechou-se ao mundo e à vida.

Do outro lado, a mulher prostrada na cama dia e noite, com o quarto fechado à chave, gemia e contorcia-se de dor diante da rede do filho de sete anos arrancado dos seus braços pela morte. Perdera a noção do tempo e  abdicara de banhar-se, alimentar-se e falar com as pessoas. Não acreditava que o filho estivesse morto. Dizia isso ao marido que, igualmente tomado pela dor, não lhe dava a menor atenção. Esforçava-se para acreditar que estivesse dormindo, que aquilo era um sonho ruim e a qualquer minuto acordaria.

Vivendo sem, sequer, distinguir o dia da noite, era movida apenas pelo incontrolável e frequente desejo de jogar-se e chorar longamente sobre a sepultura do filho. Assim, a qualquer hora do dia ou da noite, levantava-se cambaleante e arrastando-se até o marido imerso na rede no quarto de trabalho, implorava para acompanhá-la ao cemitério.

Por mais dolorosa que fosse a insistência ele se mantinha calado. Ela compreendia o silêncio, fruto da sua dor, mas ajoelhada no chão de tijolos aparentes, de mãos postas e entre lágrimas rogava tão dolorosamente que ele, mesmo sem saber o porquê, silencioso e de olhar fixo no chão levantava-se e, independentemente da hora, seguia para o cemitério.

Lá chegando, sentava-se numa calçada próxima e permanecia estático enquanto a mulher, ora jogando-se sobre o sepulcro, ora abraçada à cruz misturava aos cabelos desalinhados lágrimas, terra e folhas secas.  Exaurida, mais uma vez desprendia enorme esforço para arrancar o marido da sua letargia e fazê-lo  retomar o caminho de casa.

A situação de Doca sapateiro constituía motivo de crescente preocupação entre amigos, familiares e fregueses. Os dias passavam, Mericó aprendia a administrar os traumas daquela tragédia, mas ele permanecia irredutível na sua reclusão, no seu silêncio.

A cidade já respirava os ares da normalidade quando numa manhã de domingo, a esposa, assemelhando-se a um farrapo humano arrastou-se até à rede do marido repetindo aquela cena cada vez mais dolorosa. Aparentemente insensível às dores e aos esforços da mulher para tirá-lo da rede e acompanhá-la ele, enfim, ergueu-se e, sob os olhares enternecidos das ruas, retomou a dolorosa via rumo à sepultura do filho.

Com os joelhos macerados sobre o chão pedregoso, a mãe rezava e chorava simultaneamente debruçada sobre a sepultura quando, tocada por estranha sensação, ergueu a cabeça e olhou na direção da florida alameda que conduzia à saída. Seus olhos encheram-se de luz e um meio sorriso desenhou-se em sem lábios desfigurados.

- Doca, homem! Eu sabia que ele tava vivo... É nosso menino, Doca! Ele tá vivo! Se levanta, homem! Vamos voltar pra casa com nosso Menino... - Falava, ao mesmo tempo em que sorria, chorava e, de braços estendidos afastava-se do local.

Mesmo experimentando estranhos e repentinos sentimentos, o marido permaneceu apático de olhos fixos no chão.

Decorridos alguns minutos, sentindo-se um pouco aliviado, levantou-se e, pela primeira vez, após dias, olhou para o mundo ao seu redor. A sensação era a de que estava religando-se à vida. No seu caminhar de volta para casa ainda havia tristeza, mas uma tristeza permeada de serenidade.

Chegando em casa, recolheu a rede há dias armada no quarto de trabalho, abriu a porta que dava para a rua e retomou as rotineiras batidas com seu martelo colocando uma meia-sola num sapato.

Não tardou e logo chegou o primeiro freguês.

- Cumpade Doca, tem aqui uns sapato pra consertá e engraxá  pros minino ir pra procissão.

- Pode deixá, cumade. Vão fica novim em folha.

Com a retomada do trabalho a vida do sapateiro voltou à relativa normalidade. Os parentes e amigos que muito se preocuparam com ele suspiraram aliviados e agradeceram a Deus pelo seu retorno à vida.

A conversa entre dona Menina e uma comadre, dias após o retorno de Doca ao ofício, sintetiza o sentimento dos mericoenses em relação ao jovem e talentoso sapateiro:

- Meu Deus do céu, praquele homem, era Nossa Sinhora no céu e aquela mulher na terra.

- Era mermo! E o minino cumade? Era a maió filicidade da sua vida!

- É mesmo, comadre! Perder os dois daquele jeito, duma vez só, é um sofrimento capaz de deixar qualquer um doido.  Graças a Deus, ele parou com aquela maluquice de ir pro cemitério sozinho a toda hora e voltou a trabalhar.


Aldenir Dantas


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