O DIA EM QUE ZÉ DE JOCA DESAFIOU A VONTADE DE UM MORTO
Postado em06 Dec 2014 19 21 HISTORIAS DE MERICO




Uma das características daquela gente simples da zona rural de Mericó era a objetividade. Zé de Joca era assim. Falava o mínimo possível. Outra era a religiosidade, com reverência aos santos, à igreja, aos mortos. Até nesse ponto, Zé mantinha a sua objetividade.

Seu sogro, após a viuvez, mudou-se de Mulungu para morar com ele na sua fazendola. Durante os quase vinte anos em que ali permaneceu ao se referir à finada esposa, manifestava sempre o desejo de, ao morrer, ser enterrado junto dela.

Chegado o seu dia, a filha foi a primeira a lembrar ao marido do desejo do pai. Ele, olhando para o defunto amortalhado sobre a cama, nos seus quase cento e trinta quilos, foi taxativo:

- Vai sê interrado é em Mericó, mermo!

Fazendo coro com os presentes, a mulher argumentou sobre o aspecto sagrado do desejo de um morto, devendo sempre ser levado em consideração. Zé ouviu o quanto lhe permitiu a paciência, finda a qual pôs um ponto final na questão:

- Vai sê interrado é em Mericó, sim! E se quisé ir pra Mulungu, vai tê de, no mei do caminho, se levantá da rede e dizê: me leve pra Mulungu! - Falou e saiu e deixando atrás de si censuras à sua decisão.

Sendo um homem prático e decidido, sabia muito bem o que fazia. E isso era o suficiente para não dar satisfação à mulher ou a quem quer que fosse.

No caso do sepultamento, não se tratava de pirraça com o sogro de quem aprendera a gostar como um pai. É que de onde moravam para Mulungu eram quase quatro léguas e para Mericó era apenas légua e meia. Ademais, era tempo de inverno, os caminhos estavam esburacados e o barro de louça nas ladeiras mais parecia sabão. Carregar um defunto pesado daquele numa rede para aquela lonjura seria um desatino.

E assim seguiu o cortejo do finado Mané do Brejão, conduzido por quatro homens, numa tradicional rede branca armada em grade de pendão de agave.

Pouco se usava caixões naqueles tempos. Era coisa de gente endinheirada. Havia o caixão das almas no cemitério, de uso coletivo, para quem não podia comprar. Contudo, transportar um morto de um sítio distante era mais prático na rede.

Exceto Zé de Joca, todos se achavam receosos do desafio lançado ao finado. Sempre que a rede se balançava um pouco mais devido às irregularidades do caminho, um sobressalto tomava conta dos presentes. O respeito ao desejo do morto era algo tão sagrado que não tinham a menor dúvida de que algo iria acontecer.

Entre tropeços e ameaças de quedas nas ladeiras escorregadias, defunto e carregadores chegaram ao destino.

Só quando o morto se achava com alguns palmos de terra sobre si, o receio da uma reação deste à provocação do genro abandonou os presentes.

Muito ainda se comentou a coragem de Zé ao desrespeitar a vontade do sogro. Mas ele estava de consciência tranquila, por se achar impossibilitado de atender aquele desejo. Contudo, no dia em que foi celebrada a missa de sétimo dia, recebeu, em sonho a visita do morto.

Não era de se assustar com pouca coisa, mas acordou apavorado chamando pela mulher. A visão fora horrenda. Se bem que não vira nada de mais, além do sogro. O que lhe causou mal-estar foi como se apresentou. A mortalha em um defunto quieto, deitado no seu cantinho é uma coisa, mas com ele de pé, cordão de São Francisco amarrado na cintura, algodão no nariz, vela e terço nas mãos, ao lado da cama de alguém é outra coisa.

No dia seguinte amanheceu mais arrependido do que assustado. Não arrependido por não haver realizado o desejo do sogro, mas por não tê-lo encarado no sonho e tido com ele um conversa de homem para alma e, assim, saber o porquê daquela assombração.

- Santinha, se ele aparece de novo, vou tê uma cunvessa séria cum ele, pra sabê o qui diacho qué. -  Falou à mulher enquanto ajustava o chapéu na cabeça para sair.

- Zé, eu bem que te disse: Homi, derradeira vontade de morto a gente tem de obedecê.

- Ah, é? E se ele dissesse que era pa tu se interrá junto cum ele, tu ia?

Na noite seguinte, o mesmo sonho. Era tudo tão nítido que mais parecia real. Mas dessa vez Zé encarou o fantasma com firmeza e perguntou-lhe o que desejava. A resposta já era esperada e veio sem que o morto sequer abrisse a boca. Era como a conversa se desse de pensamento para pensamento. Enfim, exigia o cumprimento da sua vontade. Queria ficar junto da esposa.

Achara impossível a tarefa de enterrá-lo junto à mulher. Imagine a de desenterrá-lo após sete dias para fazer isso. Mas tinha como certo o fato de que, se não resolvesse aquele problema iria perder o sossego: de um lado seria o velho perturbando-o em sonhos e do outro a mulher cobrando-lhe uma atitude para que a alma do pai descansasse em paz.

Não entendia aquela obsessão para ficar junto da mulher, osso com osso. Era sabido que enquanto estiveram juntos a tratava muito mal, além de ser famoso pelas farras que fazia em locais indignos de um homem e esposo honrado.

Ao relatar a nova ocorrência à mulher, esta passou a desfiar um rosário de preocupações: com o marido diante de tarefa tão difícil e, mais ainda, com a alma do pai por estar penando por causa desse desejo irrealizado.

Sempre fora de resolver, sem delongas, o que precisava ser resolvido. Assim, naquela mesma manhã, selou o cavalo e do alto da sela chamou a mulher que ouviu com as mãos no peito e ares de perplexidade suas últimas palavras.

- Vou saí pra resolvê essa peitica, mulé. E só vorto quando tiver arrisolvido. - Falou, esporou o cavalo e saiu à galope.

Santinha, mais do que ninguém queria aquela situação resolvida. Mas ver o marido sair sozinho para resolver uma coisa tão complicada a deixou mais preocupada. Sentia-se muito mal só de imaginar o que iria fazer. Se o que a alma do pai queria era que seu corpo ficasse junto com o da esposa, não tinha nada a fazer senão transportá-lo para o cemitério de Mulungu. E fazer isso, passados oito dias do enterro, para ela era algo inconcebível. Ademais, tinha certeza de que o coveiro não aceitaria mexer num defunto naquelas condições. Mas, enfim, como Zé iria resolver tal situação?

Quanto mais pensava, mais encontrava empecilhos à solução do problema e mais se preocupava. E não se tratava de preocupação infundada. Conhecia o marido o suficiente para saber que, quando ele colocava a cabeça para um lado não tinha quem o fizesse desistir. Como disse que iria resolver o problema, era impossível retornar sem resolvê-lo. E era isso que mais a preocupava. Será que iria arrebanhar alguns celerados e transladar o corpo do pai nas condições em que se encontrava?

Decerto iria a Mericó e a Mulungu. Era, portanto, provável que não retornasse no mesmo dia. A única coisa que poderia fazer nesse interim era rezar. No dia seguinte, na hora do almoço, o tropel do cavalo anunciou a chegada do marido. Abriu a porta na hora que ele pulou do cavalo

- Pronto, Santinha. Pendenga arrisorvida!

A mulher vasculhou com o olhar a roupa do marido em busca das marcas do trabalho que imaginara ter feito, mas nada viu. Aguçando as narinas, tentou identificar algum odor desagradável, mas nada sentiu. Ficara feliz com o retorno, mas faltava-lhe coragem para perguntar o que fizera. 

- Qué sabê o queu fiz não, mulé?

- Querê eu quero, mas tem até medo de perguntá.

- Tenha medo não qui num fui arrancá o difunto fresco do teu pai, não.

- Ainda bem! Fez o que, intão?

- Mandei foi o covêro arrancá os osso da tua mãe e interrá na cova dele. Num tá danado que ele num fique sastifeito cum esse arranjo.

- É. Foi bem feito. Ele quiria ficá junto da minha finada mãe, agora tá. A sua alma há de ficá sastifeita.


Aldenir Dantas

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