PAZ E AMOR EM MERICÓ
Postado em15 Dec 2014 00 43 HISTORIAS DE MERICO


O velho misto que chegava nas manhãs de domingo à feira de Mericó raramente trazia  alguma novidade. Sempre eram os mesmos feirantes, os mesmos produtos:  Severino do Abacaxi, Mené Mangaiêro, Dona Antônia do Doce mais uma meia dúzia de comerciantes, além dos passageiros que pegava pelo percurso.

Mas naquela manhã em meio àquela gente tão comum veio um casal que muito deu o que  falar.  Jovens, cada um com uma mochila nas costas e enfeites diversos: colares, pulseiras, brincos. Ambos tinham cabelos longos, desalinhados, partidos ao meio e cingidos por uma fita colorida na altura da testa.

Ele usava sandálias de couro, camiseta pintada à mão e calça Lee desbotada com alguns rasgões. Ela, saia longa, folgada, colorida cobrindo-lhe os pés e blusa, igualmente folgada, de mangas longas e tecido suave, semitransparente que, vez por outra, a contraluz permitia entrever os seios livres da costumeira peça íntima.

Ambos usavam óculos de lentes alaranjadas, coisa que ninguém vira por ali.

De mãos dadas, serenos, falando muito baixo, sempre sorridentes um para o outro e para os que não conseguiam disfarçar os olhares curiosos, passaram a manhã caminhando na feira, observando as minúcias de tudo que se vendia por ali. Até compraram um cachimbo, um abano e um pegador de brasa, alimentando mais e mais a crescente rede de comentários.

A curiosidade de muitos diante de pessoas tão esquisitas foi esclarecida quando uns mericoenses mais entendidos nas coisas do mundo moderno disseram se tratar de um novo tipo de gente sem futuro que anda por aí fazendo que não presta. Gente pior do que cigano, pois além de não ser temente a Deus, vive feito bicho, não dá bênção aos pais, não respeita os mais velhos nem as autoridades, não vai à missa, não se casa, e ainda fuma maconha.

Os comentários foram se espalhando e logo, logo, devido às falhas comuns ao telefone sem fio, as pessoas que inicialmente olhavam para o casal curiosas passaram a olhá-lo assustadas e desejosas que fosse logo embora de Mericó para evitar o risco de contaminar a gente dali. Era como se o estilo de vida fosse grave e raríssima doença contagiosa, de uma espécie que se contrai à longa distância, apenas com o olhar.

- Cumade Zefa, apois nessa vida eu já vi gente fumá inté cigarro de farinha com macela pra curá dô de dente, mas fumá pepaconha, tô pur vê!

- Pois é, cumade... Isso é coisa de gente sem futuro qui veve sorta pelo mei do mundo fazeno o qui num presta.

À hora do almoço, sentaram-se os dois à sombra de um fícus na praça e comeram frutas retiradas das mochilas. A sombra fresca e o clima ameno de junho constituíram convite irrecusável à sesta. Encostados no tronco da árvore, ela com a cabeça apoiada no ombro do parceiro, dormiram com o desprendimento de duas crianças por longo tempo.

Não faltavam curiosos, especialmente meninos que se aproximavam na ponta dos pés tentando desvendar algum segredo do casal que acordou diante de meia dúzia deles. Fizeram menção de correr, mas por não sentirem-se ameaçados, apenas afastaram-se um pouco. A jovem fitou serenamente cada um deles e sorriu deixando-os, apesar de encabulados, mais à vontade. E retirando três maçãs da mochila, as partiu ao meio e carinhosamente lhes ofereceu com um gesto.

- Aquela mulé doida tá dano coisa pros minino cumê! Só pode sê patifaria!

- Vou acabá cum isso é agora mermo. Vou dá parte na puliça, pro delegado butá esses dois prá corrê daqui.

Sem motivos legais para expulsar o casal da cidade, o delegado comprometeu-se em deixar o cabo de olho nos dois. Caso fizessem algo errado, as medidas seriam imediatamente tomadas, de acordo com a lei.

E assim aconteceu: segurando o cassetete com as duas mãos, como se estivesse prestes a agir, passou o cabo a circular a praça sempre de olho nos dois. Numa das suas olhadelas de soslaio, seus olhos encontraram os da jovem. Apesar da esquisitice e dos cabelos desalinhas era tão bonita que ele demorou mais do que devia naquele encontro de olhares. Ela sorriu para ele, como quem sorrir para uma criança. Parecendo acordar de um transe, a autoridade teve um susto e, meio sem jeito, desarmou-se colocando o cassetete na cintura. E continuou a sua caminhada investigativa, mas evitando olhar para o casal. Era como se estivesse vigiando a rua e não os dois.

Com um gesto, a jovem pediu que os meninos sentassem no gramado. Eles, silenciosamente, obedeceram. Diante dos olhares curiosos ela, abrindo uma pequena maleta preta, retirou e se pôs a ajustar um instrumento metálico, brilhante, nunca visto por ali

- Chiquim, isso deve sê uma ispingarda istrangêra... Vamo simbora daqui! - Sussurrou Tico ao ouvido do colega ao lado.

- Dêxa de sê frôxo, homi! Tá veno qui num é! Onde se viu ispingarda cum cano curto assim? - Argumentava o colega quando foi interrompido por um som que o fez calar e voltar a atenção para a jovem.

O assustador instrumento era uma flauta transversal. Sentada, de pernas cruzadas, o vestido espalhado pelo chão e olhos fechados passou ela a tocar. Mas não era aquela música que se ouvia no rádio, que se tocava nos forrós, nos bares... Era uma coisa diferente que nunca escutaram por ali. O mais próximo que ouviram foi o canto das suas mães para ninar os irmãos novinhos. Aquelas músicas que não tinham palavras, só a, a, a, a... Talvez por isso aquele som deixava-os preguiçosos, com vontade de deitar na grama e até dormir.

Enquanto a companheira tocava, o jovem, munido de uma pequeno alicate, fios, arames, linhas e outras miudezas, construía pacientemente peças semelhantes às que usavam.  

A notícia de que o casal estava dando coisas esquisitas para as crianças comerem espalhou-se pela cidade rapidamente. Biluca chegou a garantir que dentro da maça havia um “negocim esquisito” que, com certeza, era a tal maconha.

Não tardou e, atraídas pela música ou pelos boatos, outras pessoas foram chegando. Muitos eram meninos, mas também havia mães decididas a arrancar o filho daquela situação perigosa e até dizer o papel da verdade para aquela forasteira.

Esse foi o caso de Severina Fateira. Ouvindo a conversa do próprio Biluca, escanchou o filho Manezim, que ainda se arrastava, no quadril e subiu a rua apressada para passar aquela história a limpo e trazer os filhos para casa.

Esbaforida com a subida apressada, dona Severina foi acalmando-se na proporção em que se aproximava do local. O que viu foi um bocado de gente sentada na grama assistindo a moça tocar aquelas músicas tristes, parecendo com as tocadas pelo rádio em dia de finados. Mas era bonito. Era tão bonita aquela mulher de cabelo grande, partido no meio, sentada, tocando de olhos fechados que, pedindo intimamente perdão a Nossa Senhora, achou-a parecida com uma santa.

Deixando de lado o que ia fazer, sentou-se junto aos demais e, em silêncio, trouxe para junto de si os demais filhos que se aninharam ao seu redor sem perder uma nota da música ou um gesto da jovem que parecia viver a tristeza, a saudade ou a alegria daquelas melodias, acessíveis ao sentimento daquela gente simples.

Entre uma e outra pena, a moça abria os olhos, respirava lenta e profundamente, olhava para o companheiro, para o crescente público, sorria com a leveza de sempre e continuava. Numa dessas pausas que, olhando para dona Severina Fateira, deteve nesta o seu olhar, levantou-se, foi até a mulher e acariciando a cabeça do seu filho menor, pela primeira se fez ouvir pelos seus espectadores:

- Minha senhora, seus filhos são tão lindos. -  Seus olhos brilhantes encontraram os de dona Severina, igualmente encharcados de luz.

A jovem, com um terno sorriso, envolveu a mãe que, sentindo-se pouco à vontade, desviou o olhar e falou disfarçando a emoção:

- Muito gradicida, mai agora eu é qui fiquei meia sem jeito.

Assim foi aquela tarde, talvez a mais diferente que se teve em Mericó. As reações eufóricas e violentas aos boatos, os preconceitos, o exacerbado conservadorismo, a ignorância, a hipocrisia e outras mazelas típicas da raça humana no precário estágio evolutivo em que se encontra, cediam à magia daquele momento. Ali, as vozes silentes permitiam a interação de almas através da linguagem universal da música e da simplicidade. Era um momento admirável, pois, nem o padre, pregando a Santa Palavra e passando carão no povo que conversava durante a missa, conseguia tamanho silêncio, tamanha introspecção entre os fiéis.

Havia alguns que se mantinham de pé, distantes, de braços cruzados. Mas os que se aproximavam desarmavam-se, abdicavam da seriedade do adulto, sentavam na grama e, simplesmente, ouviam esquecendo-se do tempo. Até o cabo, após uma meia dúzia de voltas pela praça, resolveu integrar-se à numerosa plateia.

- Sagento, foi esperteza minha, sagento! Ali no mei, cara a cara cuns dois, se fizessem qualqué coisa errada era mais fáci de vê. Aí era só eu agí! - Justificou-se o policial no dia seguinte ao ser indagado pelo seu superior sobre o porquê de juntar-se aos demais.

- Que conversa é essa, cabo! Do jeito que você fala da mulher dá pra ver que tá mentindo. Tu tava era em estado de abestalhamento igual aos outros. Mas deixa pra lá...  isso é besteira! - Falou em tom de brincadeira e bateu-lhe levemente nas costas, deixando-o à vontade.

Faltando pouco para a passagem do ônibus vindo de Natal, a moça parou de tocar, guardou o instrumento na mochila, levantou-se e fez uma singela reverência ao público que, instintivamente, a aplaudiu.

Na hora de adentrar no ônibus havia uma pequena multidão de ouvintes acotovelando-se  na calçada para assistir a sua partida. Ela estacionou no degrau, virou-se para os presentes e, com o dedo em V, falou pela segunda e última vez àquela cidade:

- Amo muito vocês, pessoas lindas! Paz e amor, Mericó!

Quando o ônibus desapareceu na esquina as pessoas se entreolharam, algumas disfarçando um brilho excessivo no olhar. Era chegada a hora dos comentários, mas a maioria preferiu permanecer calada. Havia a sensação de que aquela música permanecia no ar e dava para continuar a ser ouvida, só não se sabia por quanto tempo.

No dia seguinte, a sensação não era a de que estivera em Mericó um casal de forasteiros, mas a de que um estimado casal mericoense se ausentara da cidade por tempo indeterminado, deixando saudades.


Aldenir Dantas



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jeglele
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Duda
26 Dec 2014 20 11
Essa Meric demais. Cada historia bem contada, heim?
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