O DIA EM QUE O PROFESSOR EPAMINONDAS PERDEU O SENSO E OUVIU ESTRELAS
Postado em28 Dec 2014 01 57 HISTORIAS DE MERICO

Mesmo havendo, supostamente, levado uma carreira de uma onça em Currais Novos, o professor Epaminondas não perdeu o seu encanto por aquela cidade. Tanto que não se cansava de referir-se àquele povo fino e educado, àquelas tradições, àquela riqueza...

A partir do seu declarado amor, ampliaram-se ali suas amizades, especialmente, entre professores dos quais recebeu honroso convite para ser jurado no mais famoso festejo junino da cidade, “O Arraiá do Magisté”. Dentre outros atrativos, contava o evento com a tradicional quadrilha das alunas do magistério. Ao júri, cabia avaliar quesitos como melhor fantasia, melhor dançarino...

Sendo a escola composta, predominantemente, por mulheres, os pares da quadrilha eram formados por duas jovens, uma das quais se fantasiava de homem. Isso dava uma graça especial ao folguedo, atraindo muitos espectadores.

Devidamente instalado à mesa julgadora, Epaminondas deliciava-se pela condição de jurado, pelo colorido do local, pela exuberante alegria do espetáculo. Sentia-se vivendo um dos seus dias de glória, com aquelas jovens passando em frente à mesa e fazendo graciosas reverências para conquistar-lhe a simpatia. Foi numa dessas exibições que seus olhos cruzaram com os do noivo e começaram brilhar excessivamente. Vale lembrar que o noivo era uma jovem vestida de homem.

A partir daquele momento o professor desligou-se de tudo, tornando-se obsoleto na sua função de observador imparcial. Como uma sombra, passou, ele, a acompanhar o noivo onde quer que este fosse. E sempre que ele (que era ela) passava sorridente em frente à comissão julgadora, seu coração palpitava e sentia aquele friozinho no estômago.

Era uma jovem alta, magra com pouco mais de vinte anos. Usava um terno azul marinho, uma gravata espalhafatosa, um sapato tamanho quarenta e quatro e um chapéu de feltro que lhe caía muito bem. Não dava para saber se seus cabelos eram curtos ou longos, pois, mesmo não aparecendo, podiam estar escondidos embaixo do chapéu. Seu rosto de traços finos não se deixara desfigurar nem com a pintura do exagerado bigode.

Achava-se o professor de olhos grudados nele (digo, nela) quando este, numa apresentação individual, passou rente à mesa e, inclinando-se para ele, com um sorriso malicioso e sensual, disse-lhe próximo ao ouvido:

- Charmoso! - Falou, piscou um olho e, rodopiando, se foi, sempre que possível, trocando olhares com o professor.

Se tivesse asas, teria Epaminondas arrebentado o teto daquele Ginásio e hoje  vagaria entre as estrelas. Não as tendo, gelou, tremeu, tamborilou na mesa, assobiou, cruzou os pés e os braços várias vezes e suas notas, como jurado, constituíram um festival de incoerência gerador de inconformismos entre os julgados. Para ele foi um alívio ver-se livre daquela mesa.

No caminho para casa onde se hospedara, Epaminondas sentia vontade de colher as flores que via pelas praças e jardins, de beijar as crianças que brincavam nas calçadas, de abraçar os velhinhos nas suas cadeiras ou janelas. Fazia reverência e sorria para todos com quem cruzava e assobiava ininterruptamente “Carinhoso” de Pixinguinha. Não sentia o chão embaixo dos pés, era como se caminhasse entre nuvens e estrelas.

De volta a Mericó, todos notaram sua sensível mudança. Estava sereno, sonhador, distante, recitando versos de Bilac e assobiando “Carinhoso”. Os parceiros de conversa desconfiavam de que havia algo errado com o professor, mas, por respeito, evitavam entrar em detalhes. Apenas o professor Barbosinha, mais afoito e provocador, fez uma rápida observação:

- O professor ultimamente tem andado tão romântico...

- Eu o que? - Indagou após alguns segundos, como que retornando à realidade.

- Romântico. O senhor anda muito romântico ultimamente. - Repetiu o colega.

- É... Coisas da vida. Cousas da vida, como diria Machado de Assis - Falou e voltou às suas fantasias.

Os presentes ocuparam-se com outros assuntos enquanto o professor permaneceu tamborilando no balcão e sofejando aquela música que não lhe saia da cabeça.

- Sei não, mas alguma coisa tá acontecendo com o amigo aí. - Comentou baixinho seu Felizardo quando o professor saiu à calçada para tomar ar e, inspirado em Bilac, ouvir as estrelas.

- Posso até está enganado, mas isso está me parecendo, me desculpem a expressão, rabo-de-saia. - Comentou Barbosinha.

- Será prufessô? Mai ele é um homi bem casado e fala tão bem da mulé! Num cridito nisso, não. - Ponderou seu Zé de Tota.

- Pois, pode aguardar que vai ser isso mesmo, seu Zé. - Rebateu Barbosinha, mudando o rumo da conversa devido a volta do professor.

- Ele disse que sou charmoso, disse que sou interessante e disse que admira homens maduros. Então, eu o convidei para tomar um sorvete. - Falou distraído, como se falasse para si próprio, com o pensamento distante, alheio ao meio em que se encontrava.

- Ele? Professor, que conversa esquisita é essa? Acorda, homem! - Falou Barbosinha, tentando trazê-lo à realidade, em meio à perplexidade dos demais.

- Não se preocupem, senhores. Ele não é ele. Ele é ela. Entenderam? - Falou como se aquelas palavras fossem o suficiente para esclarecer o mal entendido.

- Acho que aqui ninguém tá entendendo é nada, professor. É melhor o senhor explicar melhor essa história. - Falou de forma séria e contundente seu Felizardo.

- Ele é uma normalista lá de Currais Novos. Era o noivo da quadrilha do magistério. -  Falou o professor.

Após esclarecer o ocorrido, oferecendo detalhes dispensáveis pelos ouvintes, mas não por ele na condição de apaixonado, tranquilizou os parceiros de conversa e concluiu com uma preocupante revelação:

- E ele, digo, ela, ficou de tomar um refrigerante comigo na véspera de São Pedro, quando vou voltar a Currais Novos. - Comentou com a tranquilidade de um adolescente que marca um encontro com uma coleguinha da escola.

 Os amigos se acalmaram, mas seu Tião, o mais velho da turma, homem simples, sério e defensor dos bons costumes, não se contentando com tal fato, chamou-lhe a atenção para a inconveniência daquela história.

- Professô; o sinhô me adiscurpe, mai a gente é camarada já duns tempo e eu tem quase idade pá sê seu pai. Nunca sube do sinhô se meteno cum outras mulé. Eu e a mulé inté gabamo muito o sinhô e sua sinhora. Me adiscurpe, mai vou sê franco em dizê: esse enrabichamento do sinhô por uma moça me deixa mei sem jeito. Num isperava isso do sinhô, não. - Concluiu as palavras em tom solene, levantou-se e apoiando uma das mãos no ombro do amigo, despediu-se dos demais e saiu, num claro sinal de que não desejava continuar compartilhando daquele assunto.

O professor olhou para os demais, que permaneceram calados, e, sentindo-se pouco à vontade, após balançar a cabeça em sinal de desaprovação aos conselhos do amigo, despediu-se e saiu assobiando a já mencionada melodia.

Nos dias seguintes, possivelmente pouco à vontade pelas admoestações recebidas, o professor não compareceu à bodega de seu Felizardo, mas na véspera do São Pedro voltou a Currais Novos.

Conforme combinado com o noivo, a poucas horas do acendimento das fogueiras de São Pedro chegou o professor à sorveteria da praça principal, para o encontro. Numa das primeiras mesas avistou a jovem, absorta, folheando uma revista. Usava saia colorida abaixo do joelho e blusa preta justa e bem decotada. Seus cabelos eram de tamanho médio, encaracolados e um pouco ruivos.

Antes de se deixar perceber, o professor a observou e desta vez pode enxergar o seu rosto limpo de pele clara, faces rosadas e olhos grandes e escuros. Era uma jovem muito bonita, mas, para ele, faltava-lhe algo que não conseguia identificar.

A jovem já demonstrava impaciência quando ele,  dirigiu-se à mesa pisando, verdadeiramente, no chão, firme nos seus propósitos, não obstante sentindo certo vazio no peito.

- Olá jovem, como tem passado? - Saudou-a, puxou uma cadeira e sentou-se.

- Professor! Pensei que não viesse mais. Estava tão ansiosa... - Falou com uma voz forçadamente sensual, fitando-o com um par de olhos embaraçosos.

Epaminondas improvisou algumas desculpas, enquanto buscava outra maior para desvencilhar-se daquela situação. Decididamente não sentia nenhuma atração por aquela jovem. Reconhecia que era bonita, mas nada do que havia enxergado nela, naquela noite, conseguira enxergar no momento. Passou a sentir-se mal, como se acabasse de acordar após uma bebedeira. Imediatamente lhe veio ao pensamento a figura da esposa, dos amigos, da escola... Queria por fim àquilo tudo e voltar o mais rápido possível para Mericó.

- Minha cara, eu só vim para cumprir minha promessa. Disponho de muito pouco tempo. Logo tomarei um carro de volta. São muitos compromissos... Você  me entende, não é?

- Oh, que pena, professor. - Falou a jovem fazendo um biquinho e sensualizando ainda mais a voz e o olhar.

A conversa não durou mais de quinze minutos e, conduzida pelo professor, girou em torno de assuntos triviais ligados à cidade e à educação. Quando a jovem tentou adentrar num campo mais intimista, o professor, desculpando-se, levantou-se:

- Agora preciso ir, minha jovem. - Falou, deu os primeiros passos em direção à rua, voltou atrás e tomando-lhe a mão, concluiu: -  Acredite; foi um prazer enorme conhecê-la.

- Igualmente, professor Epaminondas. - Falou a moça tentando, inutilmente, retê-lo um pouco mais.

A repentina paixão do professor gerou certo constrangimento entre alguns amigos da venda, especialmente, devido é reprimenda de seu Tião. Por isso, na noite em que retornou à roda de conversa, ao adentrar a bodega, saudou os parceiros, sentou-se no seu costumeiro lugar e ninguém o indagou acerca do seu recente encontro.

Demonstrando tranquilidade, apesar do vazio oriundo de um sentimento de perda, foi ele próprio direto ao assunto:

- Encontrei com a jovem do Magistério. É bonita, simpática, agradável, mas na verdade me decepcionei. Não encontrei nela nada do que vi naquela noite, dançando quadrilha. - Falou, pediu uma dose de São João da Barra, bebeu e deu por encerrada, em meio ao silêncio de todos, a sua passageira história de amor.

Contudo, o professor Barbosinha, que não perdia uma oportunidade de provocar Epaminondas, fez um insinuante comentário sobre a decepção do colega:

- É pessoal, lá entre a gente, que é professor, diante de uma situação dessas se diz: Só Freud explica.

Aquela gente simples nunca, sequer, ouvira falar em Freud, portanto, não entendeu patavinas. Quanto a Epaminondas, fez ouvido de mercador e tratou de dar rapidamente outro rumo à prosa.


Aldenir Dantas

Para abrir a janela de comentarios, clique sobre o titulo do texto ou sobre o link de um comentario:
Para abrir a janela de comentarios, clique sobre o titulo do texto ou sobre o link de um comentario

Deixe um comentario
Seu nome
Comentarios